10 abril 2013

Enculturação na cultura popular



Enculturação é um conceito utilizado pelo semiólogo, antropólogo e filósofo colombiano Jesús Martín-Barbero no sentido em que a cultura popular foi sendo burilada, apurada, retocada, educada.

De 1500 a 1650 o clero agenciou essa enculturação. O ponto chave desse período foi a Reforma protestante e a Contra Reforma católica, cujo objetivo era purificar o que restava dos costumes pagãos no povo. Nada debruxarias, nada de tolerância com histórias que possam provocar o riso, nada de linguagem vulgar. O embate entre culturas (da hegemônica, clerical, com a popular) tornou-se mais forte.

A partir da segunda metade do século XVII, e até o início do XIX, o agente da enculturação deixa de ser a Igreja, tornando-se totalmente laico. Nesse período, que teve como marca a consolidação do Estado-Nação moderno, as representações do popular não mais eram consideradas heresias, mas coisas sem sentido, irracionais. O avanço da ciência, com sua ênfase nos métodos, nas experiências e nas provas, contribuiu para que a sabedoria popular perdesse suaverdadefrente às leis científicas.

Um dos mais importantes dispositivos da enculturação foi a instauração do tempo linear em detrimento do tempo cíclico popular, aquele cujo eixo estava nas festas tradicionais populares. Tais festas, antes vividas repetitiva e ciclicamente, foram sendo transformadas em espetáculos BARBERO, 2001, p.143). O tempo da nova ordem econômica (o capitalismo burguês) é abstrato (seu símbolo é o relógio), ao contrário do tempo popular (que se submete à natureza). Isso explica a maneira com a qual o lazer é tratado nos tempos modernos e contemporâneos. Vivemos numa sociedade de espetáculo, de lazer propriamente adquirido.

A ideia de cultura criada pela burguesia, classe que ascende ao poder derrubando opríncipe(embora objetivamente para ficar em seu lugar), transformou o mundo real naquilo que para ela era a sua representação de mundo, e as diferenças culturais naquilo que era a sua representação de cultura. Foi a burguesia, portanto, quem dirigiu a união entre a cultura da elite (nobreza) e a cultura popular (das camadas pobres) sob o manto da cultura oficial, a qual agora se constituía como hegemônica.

No período de instauração do capitalismo industrial, período de forte crise social, as classes populares se apegaram às suas representações simbólicas (canções obscenas, o teatro burlesco, a literatura de cordel, a cultura da taberna, o romanceiro popular, o circo, o espetáculo de feira, etc), que garantiam a vigência de sua identidade, numa atitude muitas vezesirônica para com a lei e uma capacidade de gozo que nem os clérigos nem os patrões puderam amordaçar(BARBERO, 2001: 153). A capacidade de reinterpretar os acontecimentos mostra que essas representações do popular não se mantiveram à margem do processo histórico.

DIVISÃOE é Peter Burke em sua obra Cultura Popular na Idade Moderna que conta:Em 1500, a cultura popular era uma cultura de todos: uma segunda cultura para os instruídos e a única cultura para todos os outros. Em 1800, porém, na maior parte da Europa, o clero, a nobreza, os comerciantes, os profissionais liberaise suas mulhereshaviam abandonado a cultura popular às classes baixas, das quais agora estavam mais do que nunca separados por profundas diferenças de concepção do mundo (). O clero, a nobreza e a burguesia tinham suas razões pessoais para abandonar a cultura popular. No caso do clero, a retirada fazia parte das reformas católica e protestante (). Para os nobres e a burguesia, a Reforma foi menos importante do que a Renascença. Os nobres vinham adotando maneiras mais 'polidas', um estilo novo e mais autoconsciente de comportamento, modelado por livros de boas maneiras, entre os quais o famoso era o Coutier de Castiglione. Os nobres estavam aprendendo a exercer o autocontrole, a se comportar com uma indiferença estudada, a cultivar um senso de estilo e a andar com um modo altivo, como se estivessem numa dança formal. Os livros de dança também se multiplicaram, re a dança da corte se isolou da dança do campo(páginas 356 e 357).

Burke revela que a nobreza precisava mostrar que era diferente dos outros. Assim, as maneiraspolidas da nobreza eram imitadas pelos funcionários públicos, advogados e comerciantes, que queriam passar por nobres. A língua das pessoas comuns foi rejeitada pelas classes superiores. As pessoas educadas falavam (sueco, francês, dinamarquês, inglês) e abandonavam sua língua aos artesãos e camponeses (provençal, bardos tradicionais). Duas línguas para duas culturas.


Não foi apenas a língua das pessoas comuns que foi rejeitada pelas classes superiores, e sim toda a sua cultura. A mudança de atitude marcou sua retirada da participação nas festas populares. O clero, a nobreza e a burguesia estavam interiorizando a moral da ordem e do autocontrole. As classes superiores rejeitavam não apenas as festas populares, mas também a concepção de mundo popular. Um bom exemplo é o exame da transformação das atitudes em relação à medicina (o formado na universidade), à profecia e à feitiçaria.

A cultura erudita transformou-se com grande rapidez entre 1500 e 1800, a era da Renascença da Reforma e Contrarreforma, da Revolução Científica e do Iluminismo. A cultura popular europeia estava longe de ser estática durante esses três séculos, mas na verdade não se transformou, e nem poderia, com tanta rapidez. Mas existiam todos os tipos de contatos entre a cultura erudita e a cultura popular. No entanto, isso não foi suficiente para impedir que aumentasse o fosso entre a cultura erudita e a popular, pois as tradições orais e visuais não conseguiram absorver rápidas transformações pois eram resistentes às transformações.
 
No século XIX, o crescimento das cidades, a difusão das escolas e o desenvolvimento das estradas de ferro, entre outros fatores, tornaram possível e até inevitável a rápida transformação da cultura popular. Mesmo que o fosso entre as duas culturas ampliou-se gradativamente, da mesma forma algumas pessoas cultas começaram a encarar as canções, crenças e festas populares como exóticas, curiosas, fascinantes. Dignas de coleta e registro. Esses primeiros compiladores foram fundamentais para preservação dessa cultura popular.

Bibliografia:

BARBERO,  Jesús Martín. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras,2010


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