Toda a história da República o
aparelho estatal brasileiro submeteu as classes dominadas a maus tratos e
torturas. Na República Velha, por exemplo, os operários foram sempre encarados
como perigosos. E a questão social passou a ser considerada um caso de polícia.
Foi a partir daí que se criava inúmeros mecanismos de intimidação e controle
que perduram até hoje. Movimentos populares como a Cabanada, Balaiada, Canudos,
Quilombos dos Palmares, Muckers, revolta da Chibata entre outros foram
resolvidos através de violenta repressão. No auge da repressão (1964), o Estado
preocupou-se em divulgar uma imagem do Brasil como sendo uma ilha de
tranqüilidade num mundo conturbado. O Brasil era “um país que vai pra frente” e
tratava-se de “amá-lo ou deixa-lo”.
Quando começa a “abertura”, o
mito da índole pacificado brasileiro é relegado a um segundo plano no discurso
oficial e a “violência urbana” é quase exclusividade da delinqüência da classe
baixa. Na sociedade omitiu-se a desnutrição, a miséria, acidentes de trabalho e
a falta de emprego. Assim a violência não é só uma estratégia de sobrevivência
por parte das classes dominantes (para satisfazer necessidade econômica), mas
se reveste de um caráter político para garantir privilégios e hegemonia.
Nesse esquema de bombardeio
constante de violência na classe baixa nunca se questionou os crimes de
colarinho branco, as grandes negociatas, os acidentes provocados por falta de
segurança no trabalho, a morte pela miséria. Essas questões são esquecidas para
criar uma imagem maniqueísta de realidade. Assim as camadas privilegiadas
procuram o bode expiatório para aliviar sua culpa.
Depois de décadas de rigorosa
pesquisa de campo, orientada por sólida formação antropológica e sociológica, a
professora titular de antropologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Alba Zaluar, coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências coloca em debate
público os efeitos provocados pela emergência e rápida expansão do crime
organizado. Em 14 capítulos sua obra “Integração Perversa: pobreza e tráfico de
drogas” (FGV Editora, 2004) passa em revista os principais argumentos que
povoam o imaginário da opinião pública e, em particular, dos cientistas
sociais. Ela examina detidamente teses clássicas que supõem “causas da
violência” como pobreza e desemprego, crise da família, escolarização
insuficiente, surgimento de gangues e a natureza “não-humana” dos delinqüentes.
Discute ainda as relações entre democracia, cidadania e violência, o papel das
agências encarregadas da lei e da ordem, o lugar da cultura popular na produção
das imagens sobre crime, criminosos e criminalidade.
“A discussão pública sobe
violência e a criminalidade criou uma perigosa divisão que ameaça a frágil
democracia brasileira. De um lado estão os libertários que, a partir da
afirmação de que a sociedade é que é criminosa – na medida em que, por ser
desigual e iníqua, sustenta uma ordem que contém, controla e limita desejos e
paixões individuais -, acabam por atacar qualquer ordem social, especialmente
quando parte do Estado. Viva a desordem: eis o seu lema. No outro extremo estão
os que, em virtude do medo e da indignação antes os horrores praticados pelos
insubordinados bandidos de hoje, pensam que a ordem deve ser mantida a qualquer
preço, sem considerar as perdas da liberdade individual. Viva a ordem,
entregue-se tudo a Leviatã: eis o seu atual desejo. A manutenção do atual
dilema pode nos levar ou ao caos e à extensão do estado de guerra a todos, ou
então ao recrudescimento da ordem autoritária”, escreveu.
(...) “A correlação entre pobreza
e criminalidade ou entre pobreza e violência deve ser problematizada. Atribuir
apenas à pobreza – que sempre existiu no país e que teve vários indicadores
melhores nas décadas de1970 e 80 – o incrível aumento da criminalidade e da
violência observado nas duas últimas décadas, especialmente na última, é
alimentar preconceitos e discriminações contra os pobres. Além de constituir um
erro de diagnóstico, que pode tornar ineficazes as políticas públicas adotadas
a partir dele, tal postura tem efeitos políticos desastrosos”.
Para a autora, a hiper
valorização da masculinidade e consequentemente a necessidade que o indivíduo
tem de mostrar que é superior, forte, o incumbe de coragem para enfrentar os
inimigos, especificamente as organizações criminosas concorrentes e a Polícia.
Deste modo, Zaluar não limita sua explicação apenas ao âmbito da racionalidade
econômica – a busca do lucro cria coragem, o espírito guerreiro. Ela mostra que
uma explicação cultural, mais concentrada no âmbito da antropologia, é
necessária, adequada e útil.
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