Ele é importante por representar a resistência dos quadrinhos de autor, adulto, fugindo das soluções bem-sucedidas do humor e da pornografia. Ele transita entre diferentes caminhos artísticos. Quadrinista, dramaturgo, escritor e ator, Lourenço Mutarelli entende a vida, contanto que haja verdade, vale tudo. “Você pode buscar outras formas de se expressar, mas vindas do mesmo lugar. O que importa é ser verdadeiro”.
Ele começou a se exprimir desenhando. Cursou a Faculdade de Belas Artes de São Paulo porque queria pintar quadros, mas sentia a necessidade das letras; Sempre que desenhava acabava escrevendo algo no canto da página,. E vice-versa: se escreve algumas palavras, faz um rabisco no papel. “Essa mistura de texto e imagem reforça a necessidade de me expressar e é por isso que preferi me dedicar aos quadrinhos”.
A produção própria começou com fanzines que ele mesmo distribuía. Os primeiros dois títulos em quadrinhos, Over-12 (1988) e Solúvel (1989), tiveram 500 exemplares impressos pela extinta Pro-C Editora, de Francisco Marcatti.
O paulistano Lourenço Mutarelli marcou seu início nos anos 80, sobrevivendo a um incipiente mercado independente e mantendo em sua obra a mesma dignidade até hoje. Na sua premiada obra “Transubstanciação” (1991), o poeta Thiago sofre um angustiante estado de alteração mental. Não sabe exatamente se está sonhando ou se as coisas estão realmente acontecendo. O chão balança embaixo dos pés, como num terremoto. Em seus delírios, resolve conversar com o Todo Poderoso. O diálogo entre os dois é antológico.
Apaixonado pelo cinema, pintura, literatura e quadrinhos, Mutarelli foi um atento observador dos filmes de Tarkovski, dos quadrinhos de Philip Druillet (futurista) e Will Eisner, das pinturas de Bosch e Brueghel, da literatura de Beckett e Gertrud Stein. Lembrando ainda do norueguês Edward Munch, pioneiro do expressionismo, mestre do sufoco. “O Grito” é uma de suas obras mais conhecidas. O surrealismo escabroso de seus traços fica por conta de uma personalidade depressiva, agravada por uma Síndrome de Pânico que enfrentou em 1990 com pesadas doses de psicotrópicos.
O território das histórias de Lourenço está numa região oculta do cérebro – o inconsciente. “O Cheiro do Ralo” trata de um universo bizarro e de um personagem que compra e vende objetos usados. A história de um comerciante vil, torpe, que se redime por amor a um derrière. Antes de “Transubstanciação” (que chegou a vender 13 mil exemplares) ele publicou “Os Desgraçados” e “Eu Te Amo Lucimar”. No álbum “A Confluência da Forquilha” ele mostra um artista que não consegue unir palavra e imagem, minando a cada raciocínio sua habilidade de perceber o mundo. Narra a história do pintor Matheus, que faz sempre o mesmo quadro (o retrato do poeta francês Baudelaire) e vê seu mundo desmoronar quando sua mulher vende todas as suas obras idênticas para comprar comida para a família. Ansioso por ganhar dinheiro, ele se envolve com Moloc, que lhe impõe um pensamento lógico e lhe tira a inspiração artística.
O traço, expressivo, consegue amarrar a atenção do leitor sem se distanciar do texto denso e poético. Cínico e de humor negro cortante, o álbum traz o incômodo dos malditos, dos que estão sempre à margem, subterrâneo, espreitando a vida na superfície. Denso, cruel, infernal. Seus personagens são claustrofóbicos. “Sequelas” saiu em 1998.
Ele mesmo escreve, desenha, arte-finaliza e coloca as letras em seus álbuns. Seu trabalho é como terapia. “Tem gente que acha que desenhar é uma bênção. Para mim, é uma maldição. Eu não consigo parar. Eu faço quadrinhos porque preciso”, disse em uma de suas entrevistas. No início ninguém queria editar seus trabalhos porque os considerava muito diferente do que era publicado. “Eu consigo classificar minhas histórias como psicológicas. Elas são, talvez, uma mistura de gótico com estados de alma”.
Sobre seu trabalho, escreveu Lucimar Ribeiro Mutarelli: “Magnetizado pelo cinema alemão (principalmente Herzog) e por um filme em especial, As três coroas do marinheiro, de Raul Ruiz (realizado em co-produção Chile e França), contaminado pela literatura de Kafka e Dostoievski e embriagado pela música de Carlos Gardel, Lourenço Mutarelli gerou um grande número de heróis atípicos das histórias em quadrinhos. Personagens que parecem viver em uma dimensão muito próxima à nossa, envolvidos pela depressão urbana quando são capturados para viverem momentos cruciais (e muitas vezes terminais) de suas vidas”.
E continua: “O artista, que viveu sérias crises de síndrome do pânico, usa suas histórias em quadrinhos como a melhor forma de comunicação que encontrou com o mundo externo. Foi desenhando que descobriu que as outras pessoas podiam entender o que sentia e como via a vida ao seu redor. A expressividade do preto do nanquim sobre a folha branca do papel (técnica preferida por ele) ampliou o realismo fantástico e sofrido de seus personagens.(...) De uma certa forma, Lourenço Mutarelli personifica, em seus heróis, retratos da sociedade contemporânea: o trágico e burlesco, movido a decepções, fracassos e muita insegurança de um mundo ficcional (ficcional?) totalmente desprovido de elementos éticos e morais. Cada leitura possibilita o descobrimento de novas particularidades dos heróis”.
Para o cineasta Joaquim Cardia Ghirotti, “A estética de Lourenço Mutarelli é a estética do grotesco. Suas formas são disformes, seus personagens, perturbados, doentes, sofridos. Predominam as sombras, o escatológico, a morte, os inimagináveis processos pelo qual o corpo passa após o fim de suas funções vitais. A perda, a deformação, o desespero, o limite, o fim, a angústia, o pesadelo infernal de se viver em dor. Estes são temas abordados constantemente através da obra de Mutarelli.
Suas histórias, desenhadas predominantemente em preto e branco, nos remetem a um universo onírico, de escuridão, deformação, mutação e morte. Um universo enevoado, uma espécie de pesadelo perene, eterno e real, que é a realidade”.
A partir de 1999 surge a trilogia do detetive Diomedes – “A Soma de Tudo. Parte 1”, “A Soma de Tudo. Parte 2”. Teve ainda os romances “Jesus Kid” e “O Cheiro do Ralo”. Este último virou filme roteirizado por Marçal Aquino sob a direção de Heitor Dhalia e tem o ator Selton Mello como protagonista. Mutarelli participa do filme. Assim o artista gráfico está envolvido profundamente com a literatura e o teatro, além do prazer de interpretar.
A ideia central da tragicomédia O Cheiro do Ralo surgiu porque Mutarelli andava sempre mal vestido, seguido pelos seguranças e, como não sabe negociar nada, vivia tomando prejuízos. Resolveu criar um personagem que fosse o seu oposto, soubesse vender, humilhar, negociar. Na época ele trabalhava num quarto de empregada e tinha um banheiro com um cheiro insuportável. Assim, começou a imaginar o efeito que aquilo podia ter sobre o personagem. O comerciante frio e cruel se aproveita da fragilidade de pessoas que o procuram para ganhar uns trocados com a venda de alguma joia a família ou de um pertence muito querido. O próprio Mutarelli aparece no filme como o segurança da loja.
E é esse universo sombrio, doentio, mais psicológico que está fazendo com que a obra de Mutarelli seja ampliada em outras linguagens. Vale a pena conhecer o trabalho do artista. Mas se prepare para entrar no mundo das sombras, do interior das pessoas. Mesmo já tendo publicado nove álbuns de quadrinhos e cinco livros (“O teatro de sombras”, “O cheiro do ralo”, “Jesus Kid”, “O natimorto” e “A arte de produzir efeito sem causa”), Mutarelli pleno de experiências no cinema, no teatro e na literatura, o autor — que começou a carreira como cenarista de desenhos animados nos estúdios de Mauricio de Sousa, o pai da Turma da Mônica — voltou a desenhar compulsivamente em moleskines. E é em um destes cadernos que ele prepara sua volta às HQs com “Quando meu pai se encontrou com um ET fazia um dia quente”, a ser lançada este ano pela Companhia das Letras.
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