17 maio 2012

Música & sexo, uma relação muito estreita (9)

O que pode esta língua (2)


Brilhante exercício cerebral e, ao mesmo tempo, uma homenagem à língua, “O Quereres” desenvolve o potencial contrastivo de forma extraordinário. A associação entre língua, na condição de código identificador e organizador da cultura, e erotização, processo de subversão do código em aliança com o sujeito, artífice do discurso, está exposto nos versos de “Língua” (1984): “gosto de sentir a minha língua roçar/a língua de Luís de Camões”. É intencional a ambiguidade, o duplo sentido conferido à palavra língua: código cultural e objeto de sensualidade, de expressão erótica, por onde escoa a face narcísica e redutora do eu. A intermediação das duas esferas é dada pelo verbo “roçar”, como se dois corpos, sob o impulso do desejo, se tocassem, deflagrando a partir daí a cena erótica. Na continuação da canção ele pergunta: “o que quer/o que pode esta língua?”. Pode e quer o que com ela pudermos realizar: liberdade ou escravidão, autonomia ou dependência. Enfim, tornamo-nos sujeitos ou objetos da língua. Ela é o somatório de tudo o que somos e do que abdicamos de ser. A língua está à espera da transgressão, ato de ousadia de quem põe o código a serviço da vontade criadora.

Com a mudança geral nos comportamentos, atitudes e valores decorrentes dos anos 60, surgiram imagens novas sobre a mulher, como por exemplo “a da capa voadora, domadora de leões” (Super-mulher, de Jorge Mautner), ou a Barbarella, de Jorge Ben, entre outras. Tais transformações provocaram a perplexidade como registra Caetano Veloso em “Pecado Original” 

“Todo dia, toda noite, toda hora,
Toda madrugada, momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vive a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã.
Quando a gente volta o rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro, não
A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo
Todo beijo, todo medo, todo corpo
Em movimento está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto, todo pranto, todo manto
Está cheio de inferno e céu
O que fazer com o que Deus nos deu?
O que foi que nos aconteceu?
Quando a gente volta o rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro, não
A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo
Todo homem, todo lobisomem
Sabe a imensidão da fome que tem de viver
Todo homem sabe que essa fome é mesmo grande
E até maior que o medo de morrer
Mas a gente nunca sabe mesmo o que é que quer uma mulher”

O arquiteto e ensaísta Guilherme Wisnik no seu livro Caetano Veloso (da série Folha Explica), o escritor enfrenta o desafio de apresentar Caetano Veloso, considerado uma das mais inexplicáveis personalidades brasileiras -- não apenas por ser um artista polêmico e camaleônico, mas também por se tratar de alguém que não cansou de se auto-explicar ao longo dos seus 40 anos de vida artística. No quarto capítulo dedicado aos discos Transa, Qualquer Coisa, Jóia, Bicho. Muito Cinema Transcendental (Sempre Teso o Arco da Promessa) ele informa: “Toda a política mais afiada, presente no modo como Caetano lê o mundo e o tensiona, passa por uma análise político-econômica das estruturas sociais, ou pelo alinhamento artístico a alguma ´causa´ derivada de injunções ideológico-partidárias, mas por uma estética das relações humanas, cujo motor é essencialmente erótico. Um eros espontâneo e natural – em tudo contrário a uma concepção exótica do sexo e da libido – que se mostra, também, como um éthos, isto é, uma instância de valor capaz de medir conceitos como desenvolvimento e subdesenvolvimento através dos critérios de elegância, originalidade, saúde criativa, competência, dever de grandeza”.

“Cê”, corruptela de “você” que nomeia o disco de Caetano Veloso de 2006 traz imagens corpóreas e sensuais presentes em vários momentos, como na faixa “Deusa urbana”, uma balada que fala em “sexo heterodoxo, lapso de desejo”, ou ainda em “Homem” onde afirma não invejar nas mulheres a maternidade ou a lactação, nem a adiposidade ou a menstruação, mas apenas “a longevidade e os orgasmos múltiplos”. “Eu sou o homem/pele solta sobre o músculo” (...) “Só tenho inveja da longevidade e/dos orgasmos múltiplos”. Em “Outro”, o compositor brinca com o erotismo: “feliz e mau como um pau duro/acendendo-se no escuro”. Tem ainda “Odeio”, música em que todos os prazeres são possíveis (e consumados), porém insatisfatórios (“era o fim, é o fim, mas o fim é demais também”). 

Durante os ensaios para a turnê de "Cê", Caetano compôs "Amor mais que discreto", inspirada em "Ilusão à toa", de Johnny Alf. Nas entrevistas aos jornais, Caetano informou que a letra “fala de um relacionamento entre dois homens, um mais velho e outro mais novo, o que se liga exatamente com a questão de liberação sexual”. Essa abordagem do sexo – como gozo ou frustração – estão presentes também no CD do show e consta a canção que só era apresentada em show. A delicada “Amor Mais que Discreto” nos leva a imaginar um amor improvável, encantamento que não se consume. Eis a letra:

Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer
Eu não cheguei a ser
Eu sou um velho
Mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes
O grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha,
Talvez bem mais que a minha
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal
eu chegasse a ver que você vinha
E isso é tanto que pinta no meu canto
Mas pode dispensar a fantasia
O sonho em branco e preto
Amor mais que discreto
Que é já uma alegria
Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo
O seu antes, seu agora, seu depois
Sem ser remotamente
Sequer imaginado
Por qualquer de nós dois
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