16 maio 2012

Música & sexo, uma relação muito estreita (8)

O que pode esta língua (1)





   
Os professores Ivo Lucchesi e Gilda Korff Dieguez analisam a obra de Caetano Veloso no livro “Caetano. Por que não? (uma viagem entre a aurora e a sombra). “Ninguém sabe mesmo o que quer uma mulher”, já cantou Caetano Veloso. A temática da sedução, o processo contínuo do desejo se materializa na constância do verso “a tua presença”, que perpassa a totalidade do texto apoiado numa estrutura musical de tons e semitons. O desejo detonado pelo olhar (tudo decorre da constatação da presença) é capaz de absorver os sentidos:

“A tua presença
entra pelos sete buracos da minha cabeça
a tua presença
pelos olhos, boca, narinas e orelhas
a tua presença
paralisa meu momento em que tudo começa
a tua presença
desintegra e atualiza a minha presença
a tua presença
envolve meu tronco, meus braços e minhas pernas
a tua presença
é branca, verde, vermelha, azul e amarela
a tua presença
é negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra
negra
a tua presença
transborda pelas portas e pelas janelas
a tua presença
silencia os automóveis e as motocicletas
a tua presença
se espalha no campo derrubando as cercas
a tua presença
é tudo o que se come, tudo o que reza
a tua presença
coagula o jorro da noite sangrenta
a tua presença
é a coisa mais bonita em toda a natureza
a tua presença
mantém sempre teso o arco da promessa
a tua presença”.

A inalterabilidade da melodia sugere um estado de torpor, capaz de imobilizar o próprio corpo e, assim, eternizar a duração do prazer, que, levado ao ponto máximo, paralisa também a palavra. A música se encerra com a repetição enfática de “morena”: (...) “a tua presença/mantém sempre teso o circo da promessa/a tua presença/morena, morena, morena, morena, morena, morena, morena” (1971).
   
“De Noite na Cama” (1974), como o título já evoca, põe em cena a questão do desejo. A rima interna cama/ama sugere que o desejo é de ordem espacial, e, conseqüentemente, determina o ato cuja realização depende do espaço, entendido como instância de expressão do sujeito, e não como “lugar”: “de noite na cama eu fico pensando/se você me ama e quando/se você me ama eu fico pensando/de noite na cama e quando (...)”.

Em “Nosso Estranho Amor” (1986) ele mostra a intensa vivência de um querer capaz de não asfixiar um desejo. Que estranho sentimento é esse cuja origem renega a limitada interação entre os dois – eis a indagação proposta. Ou, por outra, a sobrevivência do amor passaria pela inevitabilidade das traições, a fim de retirar delas o ciúme que iria realimentá-lo: “não quero sugar todo o seu leite/nem quero você enfeite do meu ser/apenas te peço que respeite/o meu louco querer//não importa com quem você se deite/que você se deleite seja com quem for/apenas te peço que aceite/o meu estranho amor///ah! mãeinha/deixe o ciúme chegar/deixa o ciúme passar/e sigamos juntos/ah! neguinha/deixa eu gostar de você/pra lá do meu coração/não me diga nunca não (...)”.    

Já na música “O Quereres” (1984) ele não deseja seguidores, pois queres sempre abrir caminhos sem ter de repartir a vontade. Não se trata de egoísmo, mas de uma estratégia que lhe preserva a liberdade e o impeça de ceder à tentação das concessões, a inevitável consequência dos envolvimentos. Não se fixando, não descambará em mesmices; daí “O (singular) Quereres (plural)”. Apostar no deslocamento é para o eu algo vital, visceral. A chave de sua liberdade:

“onde queres revolver sou coqueiro
e onde queres dinheiro sou paixão
onde queres descanso sou desejo
e onde sou só desejo queres não
e onde não queres nada nada falta
e onde voas bem alta eu sou o chão
e onde pisas o chão minha alma salta
e ganha liberdade na amplidão (...)”.

São as contradições que estruturam a relação eu/outro. Conceder implica aceitar o jogo de dominação, cujo desfecho é o jugo de um sobre o outro: (...) “onde queres família eu sou maluco/e onde queres romântico, burguês/onde queres Leblon sou Pernambuco/e onde queres eunuco, garanhão/e onde queres o sim e o não, talvez/e onde vês eu não vislumbro razão/onde queres cowboy eu sou chinês (...)”.

A luta pelo “infinito desejo” não aceita o confinamento do papel institucionalizado. Quem renuncia a quê? Eis a questão: “e vê só que cilada o amor me armou/eu te quero (e não queres) como sou/não te quero (e não queres) como és”. O que nasce como antítese, na qual os termos são inconciliáveis, termina em conflito insolúvel: (...) “e eu querendo querer-te sem ter fim/e, querendo-te, aprender o total/do querer que há e do que não há em mim”.
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