14 maio 2012

Música & sexo, uma relação muito estreita (6)

Paixão pela palavra (4)



A canção O Que Será foi vetada pelos censores, segundo documento confidencial do extinto Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE), órgão de inteligência da Secretaria de Segurança. Os militares acreditavam que a música era um claro exemplo de “antagonismo à política militar” e de incentivo à “revolução para a mudança”, porque, segundo os censores, falava de “futuro”, “custo de vida”, “liberdade” e “política nacional”. No documento sobre a música de Chico, o então diretor do DGIE, delegado Antônio Malfitano alerta ao serviço de inteligência do Exército que as músicas do então “último disco” do cantor, principalmente O Que Será, “estão sendo tocadas com insistência nos ônibus de Niterói e do Rio de Janeiro e em rádios comerciais”. Em folha anexa, também confidencial (datada de 26 de novembro de 1976), Malfitano reproduz a letra da música e, ao lado, suas interpretações.

Para o delegado, o “antagonismo à política militar” está na primeira estrofe (que andam suspirando pelas alcovas/que andam sussurrando em versos e trovas...). Já a referência à “política nacional” está nos versos “o que não tem decência, nem nunca terá/ o que não tem censura, nem nunca terá/o que não faz sentido”. É na última estrofe que o diretor do DGIE identifica o incentivo ao que chama de “revolução para mudança” (Que todos os avisos não vão evitar/porque todos os risos vão desafiar/porque todos os sinos irão repicar...). O delegado conclui que as três últimas frases da canção (o que não tem governo, nem nunca terá/o que não tem vergonha, nem nunca terá/ o que não tem juízo) são “o motivo principal para a mudança” do regime.

O amor entre mulheres está presente em “Bárbara”, da peça Calabar (1972) e em “Mar e Lua” (1980) onde o tema é tratado com extrema sensibilidade e delicadeza. O amor urgente, reservado, proibido, “pois hoje é sabido/todo mundo conta/que uma andava tonta/grávida de lua/e a outra andava nua/ávida de mar...”. Na segunda estrofe da canção fala da exclusão social a que as duas moças foram submetidas: “E foram ficando marcadas/Ouvindo risadas, sentindo arrepios...”. O “amor proibido” é tratado com infinita delicadeza, sendo a atração que as duas moças reciprocamente sentiam metaforizada através de elementos da natureza (mar e lua), também o presumível suicídio das duas é poetizado. A crua realidade do afogamento no rio da cidade, aquilo que seria o fim (“...e foram correnteza abaixo/rolando no leito/engolindo água/boiando com as algas/arrastando folhas/ carregando flores/a se desmanchar”) transforma-se, sob o signo exatamente daqueles mesmos dois elementos aludidos: virando peixes, conchas, seixos, areia – “prateada areia/com lua cheia/e à beira-mar”.

Em “Cala a Boca, Bárbara” (1972), uma das mais intensas e delicadas canções eróticas da Literatura Brasileira, os elementos da natureza metaforizam o corpo feminino, e aí se apresenta uma mulher que é ao mesmo tempo amante e parceira de luta, a guerrilheira. Essa canção integra a peça de teatro Calabar – em que Chico Buarque e Ruy Guerra empreendem uma reconsideração do pappel histórico dessa personagem, considerado como o traidor por excelência, na historiografia oficial. Quando a peça se inicia, Calabar já morto e esquartejado, executado pelos portugueses que não apenas exigia que seu nome fosse apagado de qualquer registro onde pudesse figurar, como também proibia que seu nome fosse pronunciado. Mas restou sua mulher, Bárbara, que é quem canta a canção, e quem ele está intensamente presente. Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o ele a que se refere. No entanto, é esse nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelação, à força da repetição quase obsessiva do refrão: “Cala a boca Bárbara: CALABAR”. O nome de Calabar contém o nome de Bárbara: prisão de amantes apaixonados:

“Ele sabe dos caminhos
Dessa minha terra
No meu corpo se escondeu
Minhas matas percorreu,
Os meus rios,
Os meus braços
Ele é o meu guerreiro
Nos colchões de terra
Nas bandeiras, bons lençóis
Nas trincheiras, quantos ais, ai
Cala a boca,
Olha o fogo,
Cala a boca,
Olha a relva,
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina:
Onde guardo o meu prazer
Em que pântanos beber,
As vazantes,
As correntes,
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro
Nas campanhas, nos currais
Nas estranhas, quantos ais, ai
Cala a boca,
Olha a noite,
Cala a boca,
Olha o frio
Cala a boca, Bárbara....”.
   
É um poema em que o corpo feminino se sobrepõe a imagens da terra: rios, matas, vazantes, enchentes, selva, pântanos. Cada um desses termos pode ser submetido a uma dupla leitura, no registro paisagístico, e no registro erótico. Reagrupados de uma outra maneira (de um lado, matas, selva; de outro, pântanos, correntes vazantes), eles evocam toda uma geografia simbólica do corpo feminino, marcam inequívocas referências (por alusão e/ou analogia) ao sexo da mulher: pêlos, fenda e fonte de umidade.


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