O goliardo desapareceu no século XIII, mas seus ideais não saíram dos conventos e dos mosteiros, de imediato. Alguns de seus admiradores foram recolhendo e guardando secretamente tudo o que era obra goliarda. A primeira delas foi localizada em Munique, Alemanha. Os manuscritos datavam do século XII e procedia da Abadia Beuron, daí a denominação Burana. Carmina Burana é Canções dos Beurens, Bávaros, naturais da Baviera. A obra abrange diversos estilos, misturando textos sacros com cantos de amor. Pesquisador e apaixonado pelo Carmina dos goliardos, Carl Orff foi extraindo de vários daqueles textos latinos medievais algumas poesias e compondo a cantata cênica, Carmina Burana.
Como uma antologia, Carmina Burana apresenta tudo o que o mundo cristão entre os séculos XI e XII fora capaz de exprimir. Aquela época não foi secionada como a nossa nem inibida pelos nossos tabus. Assim, os autores anônimos dessas “saturnálias” (festas cheias de orgias dedicadas ao deus Saturno) escritas não temiam espalhar a chama incandescida pelo contato de uma melodia litúrgica e uma blasfêmia. Nesse sentido, a coleção original restaura para nós um tempo onde o bem não existe sem o mal, o sacro sem o profano e a fé sem maldições e dúvidas: a oscilação onde se encontra a grandeza da Humanidade.
Seja qual for nossa opinião sobre as letras e músicas dos cantores atualmente, a capacidade deles de sensibilizar seu público é inegável. Mas estamos no século da modernidade líquida como estudou o polonês Zygmunt Bauman onde estamos condenados a mudar obstinadamente, carregando e reprocessando incertezas
“A estreitas associação entre música e sexo é tão velha quanto o tempo. Então vários outros marcos ao longo do caminho, uma das primeiras óperas de todos os tempos – L´incoronazione di Poppea, de Monteverdi (1642) – é uma obra extremamente erótica. O mesmo ocorre com as óperas de Mozart, embora poucos diretores modernos pareçam perceber isso. Tanto o texto como a música de As Bodas de Fígaro, por exemplo, deixam claro que ´o dia maluco´ se encerrará com várias cópulas: Fígaro e Suzana, Querubin e Barbarina, o conde e a condessa, até Bártolo e Marcelina.
O primeiro ato de As Vásquírias (a segunda parte da tetralogia do Anel) se encerra com Siegmund e Sieglinde, irmão e irmã, prestes a fazer sexo. Ou mesmo a depressão pós coito no segundo ato de Tristão e Isolda, de Wagner
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A Fonte das Mulheres
A pequena aldeia, assombrada pela seca, o desemprego e a corrupção das autoridades locais - que atrasam a instalação da água encanada e da eletricidade - sobrecarrega de trabalho pesado suas mulheres. Sempre levando baldes nas costas, ladeira acima, ladeira abaixo, várias delas, grávidas, perdem os filhos. Depois de um novo aborto de uma delas, a jovem Leila (a atriz Leila Bekhti, de "O profeta"), uma das raras mulheres que sabe ler, lidera uma greve de sexo, procurando forçar os homens locais a se mexerem para resolver os problemas do povoado.
Muitos dos maridos não aceitam a “rebeldia” feminina, já que estão acostumados com uma estrutura tradicionalmente patriarcal, que leva em conta também os preceitos islâmicos. E aqueles que se mostram tolerantes passam a ser hostilizados pelos mais velhos do grupo. Usando canções e muitas cores para retratar esse embate que, de forma microscópica, retrata questões de diversos países do mundo, o filme é uma ótima oportunidade para saber do assunto sem, necessariamente, se encarar um pesado drama.
Não estou escrevendo sobre o longo período de estiagem da Bahia (algo bem parecido acontece) mas sim sobre o filme do diretor romeno Radu Mihaileanu ("O concerto", "Trem da vida"), A Fonte das Mulheres. Coproduzido pela França, Bélgica e Itália, o filme concorreu à Palma de Ouro em Cannes 2011. A trama que evoca a peça grega "Lisístrata", de Aristófanes, tem outros desdobramentos. Um deles é como se dividem as reações masculinas ao inusitado protesto, num contexto nitidamente machista e conservador.
Como era de se esperar, as autoridades religiosas intervêm, o que dá margem a uma animada discussão sobre aquilo que está ou não previsto no Alcorão. Como em qualquer religião, tudo depende das interpretações, que viajam ao sabor da conveniência de quem se habituou a ser sempre amo e senhor e não quer ver o fim desse estado de coisas.
Mesmo entre as mulheres, as opiniões se dividem. Ainda que tratando de temas sérios, o tom grave é quebrado pelo formato musical. Usando canções, injeta-se um bem-vindo humor em inúmeras situações. A fita ainda lança uma luz diferente sobre a cultura muçulmana, quebrando o molde monolítico que o fundamentalismo procura fazer crer que seja a sua única voz e expressão. Diante das sucessivas rebeliões recentes no mundo árabe (Egito, Tunísia, Síria), o filme ganha ainda mais interesse e atualidade.
Através do bom humor e do questionamento de suas tradições, “A Fonte das Mulheres” em momento algum desrespeita os costumes, apenas os questiona. E o cineasta Radu Mihaileanu mantém a qualidade da sua filmografia. Vale a pena conferir!
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