01 setembro 2011

Território da alma humana (7)

Produtos típico da cultura de massa e, mais especificamente, da cultura jornalística, a história em quadrinhos, principalmente a norte-americana, é, essencialmente, pautada pelas normas que regulam o consumo de massa – menor custo versus maior benefício, e, principalmente, pelos valores burgueses que custeiam a indústria cultural. Ou seja, a HQ é um produto, porém um produto cultural, do qual emergem discursos e deles os sentidos, as representações, enfim, os valores.

No capitulo intitulado O Mito do Superman, Eco (em seu estudo semiológico da cultura de massa e dos meios de comunicação) narra alguns episódios que ilustram bem o poder de persuasão das histórias em quadrinhos. São casos de autores que tiveram que declarar publicamente, levados por enxurradas de cartas de leitores descontentes, razões pelas quais haviam criado ou eliminado este ou aquele personagem. As mortes nos quadrinhos que são publicados por jornais junto aos obituários e pelas quais universidades e escolas públicas respeitam um minuto de silencio, enfim, toda uma gama de reações as quais, Eco nos lembra, já aconteciam em séculos passados, quando leitores indignados escreviam aos autores de seus feuilletons favoritos lhes cobrando esta ou aquela atitude perante algum personagem mais carismático. O que há de novo no caso da reação às histórias em quadrinhos é a forma maciça como esta é esquecida pela escola como recurso pedagógico. A comunidade de leitores fiéis não só vibra e acompanha as peripécias de seus personagens como também, fenômeno mais recente, consome produtos nos quais estes apareçam reproduzidos ou que faça alusão a eles. Eco concluiu que a leitura de quadrinhos alcançou um grau de inserção na sociedade contemporânea comparável apenas ás figuras mitológicas.


A civilização de massa oferece-nos um exemplo evidente de mitificação na produção dos massa media e, em particular, na indústria das comic strips, as “estórias em quadrinhos”:(...) aqui assistimos à participação popular de um repertório mitológico claramente instituído de cima, isto é, criado por uma indústria jornalística, porém particularmente sensível aos caprichos do seu público, cuja exigência precisa enfrentar (Eco, 1979, p. 244). Essa exigência que precisa ser continuamente enfrentada, essa constante manobra entre uma linguagem e seu público consumidor imprime certa flexibilidade aos quadrinhos, ou melhor diríamos, certa dificuldade de rotulá-los dentro de um gênero, com características fixas, facilmente identificáveis, e que as instituições escolares não podem fechar os olhos para esta importante ferramenta educacional.


O interesse social das histórias em quadrinhos provém, entre outras causas, da criação de uma exuberante mitologia de vasta aceitação popular. No caso das HQs, ao contrário do cinema, devido à sua liberdade de criação não subordinada ao naturalismo fotográfico nem ao físico de uns atores, condicionados além disso pelas suas atitudes e seu envelhecimento físico (apesar de hoje o cinema, através dos novos “truques” digitais, consegue se aproximar e muito da magia do quadrinho), assistiu-se à criação de uma família de heróis e super-heróis de dimensão tão fantástica que pareciam impróprio (na época) da moderna era científica (hoje é possível através da clonagem) e só tem paralelo com o das velhas mitologias orientais e greco-latinas.


Inicialmente, a narrativa épica dos comic bebeu nas fontes da literatura popular, para desenvolver alguns gêneros homólogos aos já existentes. No decorrer do seu processo de desenvolvimento conseguiu associar-se ao rádio, cinema, tevê, game entre outras mídias para proporcionar ao público aventuras estimulantes, situadas em paragens exóticas (como a África ou a Índia), afastadas no tempo (o medievo do Príncipe Valente, ou o mundo futuro de Flash Gordon) ou baseadas numa profissão excitante e pouco rotineira (detetive, agente secreto, piloto aéreo). O caráter insólito (ou seja, não quotidiano) de tais aventuras, protagonizadas por personagens graciosos, robustos e sagazes, além de invencíveis (isto é, humanamente invejáveis), agiu como estimulante evasão compensatória da rotina e das frustrações quotidianas sofridas pelo público leitor e garantiu-lhe popularidade.


Não é ocioso recordar que o gênero épico nos quadrinhos se desenvolveu a partir de 1929, quer dizer, do ano ingrato em que se iniciou a grande crise econômica mundial, resultante do crack financeiro de Wall Street, que abriu um período de austeridade, quando não de miséria urbana. Daqui a enérgica função consoladora, no plano da imaginação preenchida pelos quadrinhos épicos e pelos respectivos heróis, não diversa da consumada pelo romance popular ou pelos filmes de aventuras. À maneira de sonhos impressos sobre papel, os quadrinhos abriram as portas da fantasia ao público leitor, com deslocações a continentes longínquos, selvas tropicais, aventuras aéreas e proezas sem conta que, no plano da fantasia, consumavam quanto poderia desejar um cidadão frustrado numa medíocre, sedentária e pouco estimulante vida privada (GUBERN, 1979, p.20, 21 e 22).

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