Para Celso Gitahy (O Que é Grafiti, Editora Brasiliense), tanto o graffiti como a pichação usam o mesmo suporte – a cidade – e o mesmo material (tintas). Assim como o graffiti, a pichação interfere no espaço, subverte valores, é espontânea, gratuita, efêmera. Uma das diferenças entre o graffiti e a pichação é que o primeiro advém das artes plásticas e o segundo da escrita, ou seja, o graffiti privilegia a imagem; a pichação, a palavra e/ou a letra. Para o escritor Norman Mailer, o fenômeno do graffite é uma rebelião tribal contra a opressora civilização industrial.
Interferir, apropriar, intervir são verbos intimamente ligados à arte do grafite. Em 1976, o artista Alex Vallauri dava seus primeiros passos no grafite. Em 1985, participa da 18 Bienal de São Paulo com sua Casa da Rainha do Frango Assado. Daí por diante os grafiteiros passaram a dividir o tempo entre intervenções nas ruas, exposições em galerias e até mesmo grafites por encomenda. O movimento foi exportado de São Paulo para outros estados. O grupo Tupinãodá participou, na época, do Projeto Pinta no Rio, da Rioarte, ideia do cartunista Lapi que convidou artistas plásticos para colorir os muros da cidade. Em Salvador, Renato da Silveira e Nildão juntos desde o início dos anos 80 e seus grafites, sempre bem-humorados, acabaram sendo reunidos no livro Quem Não Risca Não Petisca. Em Recife, a prefeitura abriu espaço para os grafiteiros e até doou tintas. Nildão foi grafiteiro que saiu dos quadrinhos, fez arte nos muros, coordenou o espaço cultural Rana, depois virou designer.
Keith Haring e Jean Michel Basquiat, graffiteiros do metrô nova iorquino, tornaram-se conhecidos no mundo inteiro. Keith Haring levou o graffiti para o convívio de galerias, museus e bienais. Na França, Alemanha, Itália e Londres o picture-graffitii já se espalhava em todos os cantos. No Brasil as letras coloridas junto com desenhos elaborados, partindo de várias técnicas, também começaram a se destacar. Os desenhos traduziam o universo hip hop em suas mais variadas nuances, como figuras humanas dançando, pensando, cantando...em movimento.
Para muitos, grafite é arte e pichação não. Grafite embeleza, pichação não. Enquanto grafite é elaborado, aplicado, bem, feito, a pichação é um gesto transgressor, impõe, na paisagem urbana, uma vibração insubordinada, uma urgência interna e visceral. Dizer que grafite é arte superior é visão preconceituosa. Basta lembrar que arte nem sempre é limpinha, ordenada. Muitas vezes é um caos artístico. O grafite e a pichação usam o mesmo suporte – a cidade – e o mesmo material (tintas). Tanto um como o outro interferem no espaço, subvertem valores, pois é espontânea, gratuita e efêmera. Enquanto o grafite advém das artes plásticas, privilegia a imagem, a pichação vem da escrita, usa e abusa da palavra e/ou letra. Mas um interfere no outro. O trabalho do artista pode conter, ao mesmo tempo, imagem e palavra.
3. ESPAÇOS LIVRES PARA CRIAÇÃO
Protegidas pelo anonimato, as pessoas fazem das portas e paredes dos banheiros públicos um espaço livre para suas fantasias. Das marcas deste prazer solitário, não escapam nem mesmo os sanitários femininos. O Muro de Berlim (um sobrevivente em concreto da Segunda Guerra e testemunha eloquente da guerra fria que a sucedeu) tinha duas faces completamente diversas: Do lado Oriental, estava sempre limpo e de pintura intacta, e do outro Ocidental, desenhos e frases se sucediam, ora de forma articulada ora desordenadamente, espalhando-se por longos trechos.
No final dos anos 60, os estudantes descobriram as propriedades do Muro como meio eficiente de comunicação visual. Entretanto, foram os anos 70 que iniciaram a tatuagem de cada centímetro das paredes cinzas e, dessa arte transitória, superposta, anônima – nesse quando executada por mestres – e de propriedade de todos, surgiu uma nova realidade. O símbolo da vontade blindada passou a ser o símbolo da possibilidade de reação. Os anos 80 consagraram uma estética própria da arte do muro, feita de desenhos com giz, máscaras, estêncil, pinturas com pincel, broxa, rola ou spray; trabalhos com relevo ou mosaico.
Quando da demolição do Muro (novembro de 1989), estes garranchos figuraram nas páginas dos principais órgãos de imprensa mundial, como a significar a própria liberdade de expressão. Pichação, portanto, é protesto e crítica. Não é mais apenas o ato de escrever com pichi, aliás algo raro hoje. Ao contrário, ´pichar` é criticar, pichação é a crítica expressa na parede. Por isso, há quem diferencie pichação e grafite, opondo os artistas grafiteiros e seus desenhos aos rabiscos dos pichadores anônimos. Grafite seria arte, pichação, sujeira; Como quer que seja, têm algo em comum: são sempre uma certa transgressão e, por isso, só existem em sociedades razoavelmente abertas.
A linguagem da contestação expressa através de desenhos pelos muros teve seu auge em Salvador na década de 80. Entre nós, o fenômeno dos graffiti se espalhou por quase todas as fachadas da cidade. O artista Miguel Cordeiro, por exemplo, criou um personagem em nossos muros, o Faustino. Em 1979 quando ele começou a rabiscar paredes, havia toda uma efervescência do grafite: Mancha, Min, Zezin, Faustino vive Julio Iglesias, Faustino usa calça Topeka, usa escovinha pata pata. O grupo Baldeação (Chico Muniz fez parte) utilizou o muro como um novo veículo para a poesia. Com o grafite, um novo universo estético transcendeu objetivamente a cotidianeidade dos trabalhos domésticos e instaurou o princípio do prazer.
O grafite começou como manifestação espontânea, geralmente de grupos marginalizados. O que importava não era o estilo ou a beleza, mas a força que o traço podia alcançar ao ser inserido num lugar que não lhe era destinado. Assimilado pela publicidade, meios de comunicação e campanhas políticas em geral, o grafite perdeu parte do seu caráter marginal e passou a ser encarado como mais uma griffe na imensa poluição visual que veste a cidade. Os autores assinavam Mancha, Raio, Sombra, personagens dos quadrinhos. Personagens malditos, bandidos, deixados à margem. E esses grafiteiros escolheram esses nomes porque se identificavam.
O artista plástico Joelino Filho, um anárquico que pichou os muros usando um tipo de público. Ele retratava o momento histórico. Sua terapia era extravasar suas idéias nos muros. A linguagem dos quadrinhos se identifica com a linguagem do grafite porque é uma linguagem, rápida, moderna para o final do século XX.
Celso Gitahy revela: “O grafitar que se difunde de forma intensa nos centros urbanos é uma forma de expressão artística e humana. É impossível dissociá-la do princípio da liberdade de expressão. Tem como suporte para sua realização não somente o muro, mas a cidade como um todo. Postes, calçadas e viadutos são preenchidos por enigmáticas imagens, muitas vezes repetidas à exaustão, características herdadas da pop art. (...) No contexto da pós-modernidade, o grafitti dialoga com a cidade, na busca não da permanência, enquanto significado de arte consagrada de uma época, mas de expansão, da arte que exercita a comunicação e faz propostas ao meio, de forma interativa. As cidades não são só o suporte, mas os tons das tintas e os movimentos todos do surpreendente imaginário humano”. (GITAHY, 1999)
E conclui: “Mas graffiti e pichação são a mesma coisa? Não. São posturas diferentes, com resultados plásticos diferentes. O graffiti aceita dialogar com a cidade de forma interativa, tanto que, ao deixar o número do telefone assinalado, fica cara a cara com o proprietário do espaço.(...) Talvez, um dia, todo centro urbano, apesar de caótico, possa se tornar uma grande galeria de arte a céu aberto”. (GITAHY, 1999)
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