ROCHA
Desde bebê, minha mãe me tornou a rocha sobre a
qual construir minha vida de jovem adulto. Foi ela que incentivou os estudos,
pois meu pai era puro trabalho. Sua padaria era sua vida e, com o tempo,
tornou-se o pão mais popular do bairro. Pela manhã, bem cedinho havia fila para
comprar seu produto. Minha mãe, muitas vezes, escondida, pegava vários pães
para distribuir aos necessitados. Diante do excesso de trabalho para manter na
família numerosa meu pai era uma pessoa fria, distante e exigente. Um homem
rude, afinal. Era a imagem que fazia dele, mas um trabalhador árduo,
sistemático e emotivo, muito.
Assim, para não sair igual a ele, brutalizado
pelo trabalho, procurei estudar o máximo possível (mesmo contra sua opinião que
achava que quem estudava muito ficava louco ou mesmo suas indagações de que a
História era um monte de bobagens, pois quem escrevia era o vitorioso, quem
contaria a história do perdedor? onde está a verdade nisso tudo?, questionava)
para investir em um único aspecto da vida – a profissão.
Quando esse aspecto ficava repentinamente
ameaçado ou perdido, a dor vindo da infância ressurgia. Brinquedos? nem pensar...,
não havia economia para esse objeto do desejo e luxo numa infância pobre.
Enquanto sonhava em ter um trenzinho (do tipo Autorama) ou o famoso Forte
Apache, fazia meus próprios brinquedos com latas de sardinha (e haja latinhas
para o trenzinho) ou mesmo uma velha tábua com rodinhas de rolimã para fazer o
patinete. Na minha infância brincava ainda de bolinhas de gude, furapé,
guerreou ou empinar arraia (pipa).
Cresci numa invasão do Pero Vaz (antigo Corta
Braço). Estudei em escolas públicas. Os poucos livros que chegaram em minhas
mãos eram devorados rapidamente, os gibis nem se fala. Convivi diariamente com
o orçamento apertado da família. Sonhava em conhecer a Disneylandia (bombardeio
de marketing na época) e descobri que no bairro de Nazaré, a Biblioteca
Monteiro Lobato (foto) era maior que a Disneylandia. Aqueles livros abriram mais minha
cabeça. Para ser alguém de valor não é necessário ficar preso à realidade. Você
tem que sair da realidade e ir para o mundo dos sonhos. Esse era meu
pensamento, minha vontade, acreditar em si mesmo e planejar cada passo,
organizar o tempo, priorizando o foco principal. Tinha que ser muito
persistente, pois na minha família ninguém ligava muito para a leitura. A
sobrevivência vinha primeiro.
O bairro do Pero Vaz surgiu na segunda metade
dos anos 40, época em que a invasão começava a se formar, nos limites do bairro
da Liberdade. Na época o povo pobre lutava para construir e manter sua moradia
numa área de terra invadida. O sofrimento já fazia parte de suas vidas. Primeiro,
os sem teto invadiram o local, demarcaram áreas pra construção e viver com
simplicidade e muita ilusão. Eles dormiam mal e pensavam sem entusiasmo no
amanhã, mas lutavam pela sobrevivência com um mínimo de dignidade. A pobreza
extrema fazia a cidadania inexistente. O italiano proprietário das terras cada
vez enricava enquanto os pobres sofriam e cada vez, calavam. Uns produziam
toneladas de lixo, outros disputavam restos. Havia segregação espacial,
exclusão, fome e badameiros.
Os pobres poucos saiam do bairro por força de
um obstáculo muito forte – a renda. É como o professor Milton Santos deixou
claro que “o espaço é a morada do homem e também pode ser a sua prisão”. Assim
era Salvador que persiste e outra que mudou. A que deixou de existir é aquela que
saveiros, das roças e fazendas, dos bondes. Já a Salvador que continua, e
persiste, é a cidade das grandes desigualdades sociais, da segregação espacial,
da fome e da exclusão. Tudo isso disfarçado numa alegria eu escamoteia toda a
miséria reinante. Temos coisas boas em nossa cidade e são patrimônio do povo,
mas nossos governantes deixam a desejar....
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