16 janeiro 2013

Sociedade humorística (03)

Duas guerras mundiais não aniquilaram o senso do cômico. O riso do século XX é humanista. É um riso de humor, de compaixão e, ao mesmo tempo, de desforra. Como escreve Georges Bataille, “só o humor responde todas as vezes à questão suprema sobre a vida humana”, e sem ele os sofrimentos do século seriam ainda mais insuportáveis.

Depois, a epidemia do riso atingiu a religião – sobretudo o cristianismo, porque o islamismo continua, tragicamente, a levar-se a sério.

A democracia moderna aprendeu esta lição da história: um poder que não aceita a zombaria é um poder ameaçado, desprezado, votado a desaparecer. Só se zomba daquilo que ainda inspira algum respeito: o cúmulo do desprezo é a indiferença. As democracias modernas aceitam o contrapoder do riso porque avaliaram sua utilidade.

Hoje, a obsessão festiva é outra sinal do triunfo ambíguo do riso. A festa gregária sufoca o indivíduo, única base de um humor autêntico. A festa é, por essência, coletiva e antiindividualista, a pessoa se perde no grupo. Neste inicio do século XXI o riso está em toda parte, mas volta ao vazio. O que, outrora, fazia o vigor do cômico era o contraste com o riso: seriedade do Estado, da religião, do sagrado, da moral, do trabalho, da ideologia. Esse contraste atualmente se atenuou em proveito de um mundo raso, o da sociedade humorística, da qual Gilles Lipovetski deu uma bela descrição em A Era do Vazio.

Sob a aparência hedonista e narcisística, a sociedade humanística revela-se profundamente antiindividualista. Ele bajula a pessoa para melhor neutralizá-la. O riso tem seu lugar nesse impulso de gregarismo. Um riso inofensivo, desarmado, desligado, um riso cordial, fun, descontraído. A regra é ser engraçado e original o suficiente para não chocar. A indiferença e a desmotivação de massa, a ascensão do vazio existencial é a extinção progressiva do riso nos fenômenos paralelos – por toda parte é a mesma desvitalização que aparece, a mesma neutralização das emoções, a mesma auto-absorção narcisística. Estamos no fim do riso? Responda caro leitor, entre também nessa discussão..

Riso, o elixir da longa vida

O homem é a única criatura que ri e sabe que a morte é uma certeza absoluta. Os antigos filósofos defendiam o riso como manifestação pessimista diante da dramaturgia absurda que é a vida. Em seu livro “O Riso. Ensaio sobre a significação da comunidade”, o estudioso Henri Bergson (1859/1941) é dono da tese do riso como trote social. O riso embute o sentido de humilhar alguém. Daí o formato mais perto da vida social seria a comédia, não o drama.

De Aristóteles a Hobbes, de Platão a Georges Bataille, foram inumeráveis e quase infinitas as tentativas de conceituação do humor. Na Grécia antiga, o humor estava no centro da sociedade, nos rituais de sacrifício, danças e cultos, nos sagrados festivais báquicos, nas procissões orgiásticas. Na Idade Média, por sua vez, o humor também se expressa como representação essencialmente pública, uma prática coletiva de vilarejos, praças e igrejas, como as festas cristãs da celebração dos mistérios da Paixão, da Páscoa e do Natal. Ele integra a conjunto de práticas para as legítimas expressões próprias da época – exorcismos, conquistas, misérias, fantasias. A commedia dell´arte nasce na Itália no século XVI e se consolida no século seguinte na França como gênero teatral distinto do teatro medieval.

A partir do século XVII a tragédia se afirma como gênero “de conteúdo” e assim desqualifica a comédia, o humor e o riso como fontes de informação sobre o real. À medida que o sério na Idade Clássica passa a ser condição de credibilidade para conteúdos que pretendem exprimir verdades, o humor perde essa sua característica positiva e universal.

Na Antiguidade, na Grécia ou em Roma, na Idade Média e no Renascimento, tempos em que a razão não havia ainda espalhado certezas pelo mundo, o humor como produtor e veículo de verdade ocupa um espaço central no cotidiano da sociedade. Assim, a afirmação do poder absolutista na política, do capitalismo que o financiava na economia e do discurso da razão na ciência e na cultura, marcam a decadência da festa, da celebração e do riso como portadores da verdade.
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