15 junho 2012

Quadrinhos da vida real (13)


NOTÍCIAS & ARTE SEQUENCIAL

Desde que as tiras começaram a ser usadas pela imprensa americana no século 19, criando as bases da atual industria dos quadrinhos, as relações entre notícia e arte sequencial não vivia tamanha independência. Até hoje, é comum a imprensa usar quadrinhos como ferramenta a mais para a reconstituição de fatos e a veiculação de informação a que não se tem acesso direto. È assim com as dramatizações de casos policiais. Os quadrinhos servem para o jornalista alinhavar o enredo, humanizar o relato, recriar situações que não seriam resgatadas de outro jeito, dar contextos e introduzir comentários. Os fatos, no entanto, devem ser recriados com rigor. Caso contrário, não será jornalismo, será outra coisa.

O jornal A Tarde publicou em novembro de 2007 uma longa reportagem sobre o movimento estudantil na Bahia. O trabalho realizado por Leandro Silveira, Caio Coutinho e Fábio Franco foi criado originalmente como um projeto de conclusão de curso no Centro Universitário da Bahia. As notícias sobre o projeto chegaram até o jornalista Ricardo Mendes, professor universitário e diretor de conteúdo do A Tarde, que decidiu publicar a história. A primeira parte da reportagem “Vamos à Guerra: mocidade baiana exige entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial”, relembra as manifestações de rua de 1942, pela adesão do Brasil à Guerra contra o Nazismo. A segunda parte “Do palco para as ruas: uma história de estudantes”, fala sobre a greve de estudantes logo após o golpe de 1964. “Reconstrução e Quebra-Quebra” trata sobre o congresso da UNE realizado em Salvador, em 1979. E o último capítulo da série “Estudantes do Novo Milênio”, relembra os movimentos populares em favor da cassação de Antônio Carlos Magalhães.

Em novembro de 2009 o Correio Braziliense trouxe uma série de reportagens sobre o crescimento do tráfico de Crack na capital e em outras diferentes regiões do país. O ponto alto da série foi a publicação de uma página em quadrinhos que conta a visita da repórter Samanta Sallum ao Morro de Santa Teresa, em Porto Alegre. O local, chamado de Chapaquistão é dominado pelo tráfico. Mas é lá também que se encontra uma das principais vozes de resistência contra o crime organizado e o tráfico de drogas na capital gaúcha: Manoel Soares, presidente da Associação de Moradores e conselheiro nacional da Central Única das Favelas (CUFA). Samanta queria mostrar como era a vida dentro de uma área dominada pela violência e pelas drogas. Mas seria impensável subir o morro com máquina fotográfica ou gravador. A única forma de registrar a visita seria através de seus olhos e sua memória... Mas, como passar ao leitor a sensação de medo e perigo que ela havia experimentado no Chapaquistão. E como fazer isso sem expor a identidade das pessoas que ela encontrou no caminho? A saída foi fazer uma reportagem em quadrinhos com o apoio de ilustrador e quadrinista Kleber Salles. Kleber já é conhecido nacionalmente por outros trabalhos publicados na revista Ragu ou pela sua versão para o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis publicado no “Domínio Público”.

Diferente da reportagem publicada em 2007 no jornal A Tarde (que tinha caráter de pesquisa histórica), a página publicada no Correio Braziliense traz a linguagem dos quadrinhos para o cotidiano do jornal. Uma história vibrante, real e impactante. O texto de Samanta está em perfeita sintonia com a dinâmica narrativa de Kleber. Em apenas uma página o leitor consegue sentir o clima asfixiante que a repórter viveu ao subir o morro e encontrar-se pessoalmente com os líderes do tráfico.

A HQ hoje trata de responder a uma situação nova: a situação humorista de ontem (Yellow Kid, Sobrinhos do Capitão etc) deu lugar ao território detonado, desarticulado, fragmentado. Hoje em dia, tudo está aí, mas às soltas, em desordem. E nesse caos, os quadrinhos extrai uma unidade, a de documentar a realidade. Inventar novas visibilidades, tornar visível. Isso, de fato, supõe livrar-se dos automatismos visuais, liberar-se da ordem visual que regia o quadrinho. E para constituir novas visibilidades, o registro considerado direto, objetivo e exato não basta. Inventar novas visibilidades, tornar visível o que aí se encontra e não sabemos ver sequer uma escrita quadrinhográfica, um formato plenamente assumido por um autor. Assim, as visibilidades não se extraem diretamente das coisas, mas produzem-se indiretamente, trabalhando a forma, a imagem e a escrita quadrinhográfica.

A diferença que separa o quadrinho do autor e o quadrinho expressão é detectado na linguagem entre “falar algo preciso” e “falar só por falar”. Apostar em deixar correr livre a expressão. O artista não mostra o caos do mundo, ele a expressa. Assim procedendo, desloca o problema da objetividade que já não mais consiste em registrar os estados de mundo mas em inscrevê-los na estrutura formal significante da obra, isto é, no estilo. O caos do mundo o artista os exprime colocando em pedaços aquilo que, no seio do documento, serve de armadura à ordem visual: o realismo das cores, a unidade temática, a unicidade do ponto de vista, a plenitude do enquadramento, a perspectiva, a nitidez.

Referências:


ADETUNJI, Lydia. Os gibis cult. São Paulo: Mais! Folha de S.Paulo. 25 de junho de 2006, p.10.

ARAÚJO, Inácio. Cinema. O mundo em movimento. São Paulo: Editora Scipione, 1995.

ARBEX, José. Prefácio. Palestina uma nação ocupada, de Joe Sacco. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2000. p.07 a 11.

ASSIS, Diego. No traço da história. Joe Sacco usa jornalismo e desenhos para contar a Guerra da Bósnia em “Gorazde”. São Paulo: Folha de S.Paulo. Folha Ilustrada. 04 de janeiro de 2002, p.01.

BAZIN, André. O que é cinema?. Lisboa: Brasiliense e Livros Horizonte, 1992

CARRIÉRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995

CASTRO, Jr, Chico. Guerra & Memória. Salvador: A Tarde. Caderno 2. 23 de março de 2009, p.01.

FRAGA, Danilo. Mundo real contado em forma de HQ. Salvador: A Tarde. Caderno Dez, p. 6 e 7, 25 de Julho de 2006.

MIRANDA, Doris. Cotidiano de uma guerra. Salvador: Correio da Bahia. Caderno Folha da Bahia, p. 1, 06 de Janeiro de 2007.

MUTARELLI, Lucimar Ribeiro. Lourenço Mutarelli e a representação do herói

PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. Jornalismo em Quadrinhos. São Paulo: revista Língua Portuguesa. Editora Segmento. Ano II, n.22, agosto de 2007, p.18-23.

VALLE, Flávio Pinto. Fragmentos do Real; o realismo no jornalismo em quadrinhos.

XAVIER, Ismail (org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996

Entrevista com os autores da graphic novel Valsa com Bashir. Rio Grande do Sul: LPM Editores. 04 de março de 2009. Site: http://www.lpm-editores.com.br/v3/artigosnoticias/user_exibir.asp?id=918493.


Valsa com Bashir. Uma história da guerra do Líbano. Graphic novel de Ari Folman e David Polanski. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.

Crônicas Birmanesas. Texto e desenhos de Guy Delisle. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2009.

Uma História de Sarajevo. Joe Sacco. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005.

Palestina, uma nação ocupada. Joe Sacco. São Paulo: Conrad Editor do Brasil, 2000.

Pyongyang, uma viagem à Coreia do Norte. Guy Delisle. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2007.

Loucos de Amor, mulheres que amam serial killers e criminosos sexuais. Gilmar Rodrigues e Fido Nesti. Porto Alegre: Ideias a Granel, 2009.

Leituras recomendadas:

Marjane Satrapi. Persépolis

Didier Lefèvre. O fotógrafo

Lourenço Mutarelli. Transubstanciação, Os Desgraçados, Eu Te Amo Lucimar, A Confluência da Forquilha, Diomedes (A Soma de Tudo. Partes 1 e 2)

Frédéric Boilet, Love Hotel, Toquio é meu Jardim, O Espinafre de Yukiko

Guy Delisle – Shernzen, Pyongyang, Crônicas Birmanesas

Art Spiegelman, Maus, Breakdowns, À Sombra das Torres Ausentes

Joe Sacco, Area de segurança (Gorazde), Palestina (Na Faixa de Gaza), Palestina (Uma Nação Ocupada), Natal com Karadzic, Derrotista

Lewis Trondheim, Célébriti
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