11 junho 2012

Quadrinhos da vida real (10)


MEMÓRIAS DE SOLDADOS ISRAELENSES - 1

A graphic novel Valsa com Bashir ilustrado por David Polonsky (adaptação do desenho animado israelense) revive o massacre de palestinos cometido por milícias cristãs nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, no Líbano, em setembro de 1982. A HQ é o relato do diretor Ari Folman (na época, um soldado de Israel) sobre aqueles acontecimentos, tentando entender sua participação e a do exército israelense no crime de guerra. Pouco mais de um mês após a ofensiva militar contra o movimento islâmico Hamas que deixou mais de 1,4 mil palestinos mortos na Faixa de Gaza, Israel concorreu ao Oscar com o longa-metragem Valsa com Bashir, que usa a animação para contar a história de outro conflito israelense, desta vez no Líbano, em 1982. O trabalho gira em torno dos esforços do protagonista, que também é o diretor da produção, Ari Folman, para reencontrar as lembranças perdidas durante sua participação como soldado na invasão do Líbano de 1982 e no massacre ocorrido nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila. Valsa com Bashir concorreu à Palma de Ouro em Cannes e conquistou o Globo de Ouro de Melhor Filme em Língua Estrangeira.

As recentes edições do Festival de Cannes têm marcado a aceitação a concurso de gêneros antes considerados menores, como animação. Foi o caso da animação israelita "Valsa com Bashir". Curiosamente, o filme já foi classificado como um "documentário de animação", mas deve ser visto mais como o processo de expiação do próprio realizador em relação a um episódio do seu passado, quando cumpria serviço militar no exército israelita. Estava-se, então, nos anos 80 e vivia-se a chamada primeira guerra do Líbano. O exército israelita entrou num bairro de Beirute e massacrou centenas de inocentes, entre os quais, muitas mulheres e crianças. No filme, o próprio realizador, ou a sua versão animada, encontra-se com outra personagem, que lhe conta um pesadelo recorrente de que sofre. Identificando-se com o mesmo trauma, Ari Folman parte, então, para uma pesquisa junto de várias pessoas que com ele viveram o conflito de forma a conseguir exorcisar esse fantasma do passado.

O filme termina, no entanto, com uma série de imagens reais que nos recordam, enquanto espectador, a realidade atroz da guerra. Ao ser entrevistado pela imprensa o realizador confessou que fez o trabalho em animação porque “não podia contar a história de outra maneira a não ser com desenhos. Precisava de liberdade total. A estrutura tradicional do documentário não me servia. Tinha de fazer algo diferente, radical. Todo o filme é do domínio do subconsciente, como uma alucinação. Ou um sonho acordado.". Um processo de catarse, necessário para o seu autor.

Num país onde a guerra tem sido uma presença constante, o tema deverá atravessar toda a sociedade. A combinação inovadora de cenas animadas e documentário do filme de não-ficção ajuda a divulgar mais o filme em diversos países. O diretor Ari Folman gravou conversas com israelenses reais que lutaram na invasão israelense do Líbano em 1982 e retratou em animação os acontecimentos trágicos e violentos descritos nas fitas de áudio. A principal ascensão do filme é seu estilo, por usar animação para fazer um documentário. Por alguma razão, essa combinação híbrida acabou favorecendo o filme. O tema do filme de animação é o da recordação, por um soldado Israelita, de um episódio passado na primeira guerra do Líbano, em 1982: os massacres de Sabra e Chatila. No contexto da atual guerra em Gaza, o filme adquire uma atualidade que exige e ao mesmo tempo excede a compreensão do contexto histórico a que se refere, permitindo um conjunto de reflexões, paralelismos e perspectivas de futuro para um conflito cuja resolução continua a ser tragicamente adiada.

Esses debates irão incidir sobre aspectos tão variados como a contextualização histórica do conflito, a guerra e o stress pós-traumático, o trabalho de memória e os usos do cinema de animação, entre ficção e documentário. A Valsa com Bashir tem causado alguma polêmica nos países onde já estreou e teve um grande sucesso. Recebeu numerosos prêmios, entre os quais o de Melhor Filme Estrangeiro nos British Independent Film Awards, o de Prêmio do Público em Varsóvia e estava nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Por relatar o seu trauma de guerra, após ter participado como soldado israelita na guerra do Líbano e nos massacres de Sabra e Shatila em 1982, o filme é de grande relevância política. Denuncia no fundo que a política belicista de Israel contra o povo da Palestina já vem acontecendo em algumas décadas. Como se trata de um relato pessoal de alguém que esteve a servir no lado israelita, só os personagens israelitas são de fato humanos. Têm medo, sofrem ao ver atrocidades, desesperam com a morte dos camaradas. Os palestinos são quase sempre uma coisa lá ao longe contra quem eles disparam.

Para além disso, todo o relato do massacre é feito como se fosse algo que aconteceu há muito tempo, um erro do passado, cometido por governantes do passado. Como se hoje não se estivesse a passar o mesmo. Finalmente, saímos do filme com esta necessidade de perdoar o realizador e os amigos que entrevistou e compreender que eles, apesar de tudo, estavam só a cumprir ordens, eram novos demais, tinham demasiado medo para ponderar com calma, estavam embrutecidos com a guerra, etc, etc, etc. Alguns espectadores podem aceitar isso, mas será que o grande público também consegue fazer o mesmo tipo de raciocínio com os jihadistas que se fazem rebentar no médio oriente?

Em entrevista publicada no site da editora gaúcha LPM, Ari Folman e David Polonsky explicam como surgiu a ideia para o livro, o processo de criação da animação e dos quadrinhos e a principal mensagem contida na obra: O projeto começou como um filme, claro, mas o filme era mais influenciado pelos graphic novels (romances gráficos) do que por qualquer outra coisa que já tenha visto. Sou um grande fã de graphic novels, e os livros em geral não saíam da minha cabeça durante todo o processo, especialmente Catch 22, Matadouro Nº 5, e As aventuras de Wesley Jackson ― romances de escritores que haviam vivenciado a experiência da guerra e depois, com um olhar distanciado, conseguiram descobrir o aspecto irônico e divertido que havia naquilo tudo. De modo que a versão em livro sempre me pareceu óbvia e trabalhamos nos dois simultaneamente. (FOLMAN, 2008).

Sobre escolher contar a história através de quadrinhos e animação ele afirmou: “Isto nos deu total liberdade para fazer o que bem entendêssemos. Podíamos passar de uma dimensão para a outra, de fatos reais ao subconsciente, aos sonhos, às alucinações. Isto nos deu a liberdade de jogar com uma gama variada de elementos em um único enredo fluido, sem qualquer tipo de limitação, além de permitir que as cenas de guerraque todos estão cansados e acostumados a veradquirissem um aspecto totalmente novo”.(FOLMAN, 2008).

Em relação aos desenhos, qual foi o maior desafio? Foi a pergunta feita ao desenhista David Polonsky que respondeu: “As ilustrações tinham de ter um forte sentido de verdade. Eu não tinha como fingir que as coisas que eu mostrava haviam acontecido exatamente daquela maneira, embora tivessem que estar sempre atreladas à autenticidade. Para várias cenas, no entanto, eu não possuía qualquer tipo de referênciacomo aquela em que Ari está no terminal aéreo de Beirute, por exemplo. Some-se a isso o fato de que, por ser israelense, não posso ir a Beirute, o prédio em si foi demolido e reconstruído. Assim, não tinha a menor ideia de como o terminal seria por dentro. Mas havia algumas referências que podiam ser utilizadas: a cena se passava na década de 80 e o prédio era dos anos 30, e também havia o Ari e a impressão que ele teria sofrido como um jovem soldado diante do esplendor do modernismo europeu presente na construção. Recolhemos velhos posteres de companhias aéreas do Líbano e esses detalhes se refletiram nos painéis”.(POLONSKY, 2008).

O filme é uma tentativa de expiar a culpa israelense no episódio que inspirou seu título. Bashir Gemayel era o líder de uma milícia cristã maronita apoiada por Israel durante a guerra civil libanesa. Ele foi assassinado logo após ser eleito presidente do Líbano, em 1982. Um dia depois, seus partidários falangistas invadiram Sabra e Chatila, dois campos de refugiados palestinos nos arredores de Beirute. A vingança durou dois dias e levou à morte 1.700 palestinos. O extermínio foi observado passivamente pelos soldados do Exército de Israel, que na época controlavam a área.

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