13 junho 2012

Quadrinhos da vida real (11)


MEMÓRIAS DE SOLDADOS ISRAELENSES - 2

Valsa com Bashir põe o dedo na ferida, narrando episódios de guerra nunca antes relatados. Resgata algumas lembranças do conflito entre Israel e Líbano nos anos 80 e foca na procura do autor por antigos colegas de exército para coletar depoimentos sobre o ocorrido. Conta uma história conhecida: os massacres de Sabra e Chatila, na guerra do Líbano, em 1982. No fim, o que vemos é a história então contada ao mundo pelas câmaras de televisão. Sabra e Chatila eram dois campos de refugiados palestinianos. Sob a complacência israelita, cristãos libaneses massacraram inocentes, mulheres, crianças, velhos. O que vemos no ecrã é o regresso de sobreviventes aos campos – que choram e gritam. A dor já não é filtrada pelas cores intensas do desenho: o protagonista confronta-se com a sua memória que apagou os dias da guerra no Líbano e decide partir em busca do que foram esses dias. A sua descoberta é a nossa.

Folman é um realizador israelita e foi soldado na guerra de 1982. Mais de 20 anos depois, um encontro com um amigo traz-lhe à memória esses dias, de que não se lembra, de que apagou o registo. A partir daí o filme constrói-se de encontros entre camaradas de armas onde Ari vai reconstruindo a sua ida à guerra. A sua viagem é nossa também e à medida que ele compõe o quadro do que aconteceu naquele ano, o leitor vai construindo também a teia complexa em que se enredou já há muito o Médio Oriente. A história em quadrinhos apresenta um olhar notável de inteligência e beleza, de sonho e medo sobre os eternos conflitos da região. Por entre as cores fortes, a atenção aos detalhes da imagem, o olhar quase terno das personagens sobre o seu passado, as ideias feitas são desarrumadas. No meio dos tiros, Ari Folman põe-nos a dançar a valsa, para sublinhar o absurdo da guerra, de qualquer guerra. A imbecilidade da guerra é mostrada. Tudo do lado do atacante. A “Valsa com Bashir” é, antes de qualquer outro adjetivo, intemporal. O fato de estar datado e situado em nada o altera. Depois, é cru, humanista, existencialista e freudiano. É uma obra que suga todo o amplexo do ar.

O ponto forte da história é quando são mostradas as “verdades” que estão por trás de todas as guerras: massacre, genocídio, destruição. Algumas sequências reais, imagens de arquivo no final, acordam o leitor para a realidade. O massacre de Sabra e Shatila suscitou ultraje mundial, e uma comissão de inquérito formada em Israel responsabilizou indiretamente o então ministro da Defesa Ariel Sharon, forçando-o a renunciar do seu cargo. A comissão concluiu que Sharon, que mais tarde se tornaria primeiro-ministro, ignorou os avisos de que os falangistas massacrariam os refugiados palestinos para vingar-se da morte de centenas de civis cristãos por guerrilheiros palestinos no sul do Líbano, seis anos antes.

Outro caso de animação indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro e com grande repercussão em todo o mundo foi o iraniano Persépolis, baseado nos quadrinhos homônimos de Marjane Satrapi. No Brasil, os quatro volumes da HQ foram publicados pela Companhia das Letras entre 2004 e 2007. Os dois filmes, Persépolis e Valsa com Bashir, contam histórias individuais. O primeiro surgiu em quadrinhos para depois ser transformado em desenho animado. Já o segundo, “Valsa” fez o caminho inverso, primeiro no cinema para depois a versão em quadrinhos.

Desta forma Persépolis retrata a chegada de um regime tirano do ponto de vista de uma menina de dez anos – a autora quando jovem. Narra o fato de dentro, valorizando o drama humano de quem viveu injustiças, perdeu os direitos básicos e pôs em dúvida todos os valores. Ela via o conflito enquanto vítima. Já Valsa com Bashir testemunha o resultado de ação traumática de guerra entremeados de sonhos e alucinações que estavam enterrados no subconsciente do autor. Persépolis e Valsa com Bashir partem do tema da memória para reconstruir os acontecimentos de um período.

O contador de histórias tem uma função consagrada pelo tempo. Conta aos homens de onde eles vieram, cria fábulas para eles, concluindo com uma moral, para mostrar-lhes, do seu jeito, como deveriam se comportar. Faz com que se divirtam e aprendam. Ao longo dos séculos, os contadores de histórias têm usado o mito, as epopeias, os gracejos, as adivinhações, o teatro, o romance e o cinema. Hoje, mais do que nunca, vivemos dentro de histórias que nos foram contadas. Todas as nações, em todas as épocas, ansiaram por melhores histórias, porque histórias são o material de que são feitas as pessoas, que nele se reconhecem e se identificam. Nossas vidas têm muitos outros componentes. Nem precisamos dizer isso. Não somos constituídos somente de histórias. Mas, sem histórias, somos nada, ou muito pouco.

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