O que você acha do “politicamente
correto” para o humor, no Brasil?
N - O limite do humor é o respeito às diferenças. Piadas politicamente
incorretas são frutos do deboche e humilhação de determinado segmento da
sociedade. Ao fazer humor sobre determinado grupo, o humorista agrava o
preconceito, dissemina o ódio e a intolerância. Prefiro o humor de reflexão,
que valoriza a inteligência do leitor e procura denunciar e ironizar as
relações autoritárias do poder sobre a maioria da população.
Nos anos 70, 80 e 90 havia em Salvador
um fervilhar de publicações como Coisa, Coisa Nostra, Pau de Sebo, Vilões,
Esfera, Nego, DesHQue, Tudo com Farinha, diversas exposições de artistas
gráficos baianos, debates, seminários. Hoje tudo isso ficou no passado. O que
aconteceu com nossos artistas?
N
- Acredito que nesse período vivemos o “boom” do cartum e dos quadrinhos aqui
na Bahia e no Brasil, também. Com o passar dos anos, esse tipo de expressão foi
minguando, os jornais, cada vez mais comprometidos com o departamento
financeiro foram se desinteressando por esse tipo de arte. Sem ter onde
publicar e tendo que bancar as próprias iniciativas, os artistas migraram para
outros tipos de linguagens, como o design gráfico, a pintura, a direção de arte
em agências publicitária e outras modalidades.
A
criatividade, como qualquer expressão, precisa de estímulos para se manter. Se
você não encontra retorno financeiro e de público no que faz, dificilmente você
vai continuar fazendo.
No
meu caso, como abri mão de todas as facilidades para abraçar esse tipo de
expressão, fui em frente, exercitando permanentemente a criatividade, bancando
meus projetos, buscando financiamento através de editais do governo e
desenvolvendo conteúdo próprio nas mais variadas linguagens do humor.
Da Primeira República até os dias atuais
o pesquisador e cartunista Alvarus afirmou que o período de Médici foi o mais
sombrio, “a pior para a caricatura”. De todos os presidentes qual o que você
acha que prejudicou mais os artistas gráficos?
N
- Nos anos de chumbo pairava o medo na sociedade brasileira. Os cartunistas,
por estarem bastante expostos, publicando em jornais que combatiam a ditadura,
também sentiam e captavam a paranóia que estava no ar. Concordo com Alvarus: o
período Médici foi o mais tóxico para os profissionais de humor e, no entanto,
os cartunistas, apesar de todas as ameaças, continuaram criando com brio e
competência.
Nos anos 70 o cartunista Henfil dizia
“nois sofre, mas nois goza” e completada por outro, lembrada pelo Fortuna, “só
dói quando ri”. Você também atravessou essa geração...
.
N
- Participei de vários Salões de Humor e sempre fazia questão de me aproximar
de Henfil, que eu considerava uma referência. Quando participei do V Salão de
Humor de Piracicaba pela primeira vez em 1978 e fui premiado, encontrei com
ele, que me parabenizou e fez questão de dar um autógrafo especial, para a
ocasião. Já o Fortuna, todos os cartunistas que conviveram com ele são unânimes
em considerá-lo “o cartunista dos cartunistas.”
Tanto
a frase do Henfil como a do Fortuna revelam um dado interessante dos
humoristas: eles são sensíveis, verdadeiros radares que apontam as mazelas da
humanidade de forma bem humorada, buscando a ironia e o ridículo para desmontar
as relações de poder.
A
filósofa Márcia Tilburi diz uma coisa interessante sobre o riso: “quando
extrapolamos a possibilidade de chorar, quando já não têm mais lágrimas, quando
não se pode fazer mais nada, quando a dor nos secou de tal maneira que só sobra
mesmo um riso. E este riso não é do gozo, cômico, mas um riso que ultrapassa
até mesmo o escárnio, e atinge a condição de sabedoria em relação à nossa
miséria.” E Freud já dizia: o humor é raro, precioso, rebelde e teimoso.
Existe um traço nacional, de
personalidade e desenho, do humorismo brasileiro?
N
- Não consigo perceber um traço geral, que caracterize o desenho e o humorismo
brasileiro. Somos uma sociedade democrática que ainda se encontra em formação,
buscando sua identidade e, portanto, aberta à críticas e ironias.
Como artista visual e sempre muito
gráfico, mesmo quando seus trabalhos se dirigem a um público adulto, conserva o
romantismo e grande dose de pureza infantil. Esta identificação com as crianças
fez com que realizasse em (1983 com a individual Pernas pra que te quero) e agora em 2017 com exposição dedicada às
crianças?
N
- Como cartunista, desde cedo que busquei desenvolver trabalhos que fossem
atemporais e universais e que se destacassem dos demais cartunistas através do
lúdico, onírico e poético. Numa linguagem simples, tensionada e com poucos
elementos visuais fui, ao longo dos anos, desenvolvendo minha “poética
humorística”, com o objetivo de instigar o universo infantil através da
fantasia e do nonsense. No ser humano, o humor é nato, começa com a atividade
lúdica da criança e vira brincadeira de adulto, fruto de sua imaginação criadora.
Estimular o humor nas crianças é a garantia de que no futuro, teremos adultos
mais leves, mais sadios e mais centrados. Para ser bem humorado, o ser humano
precisa desenvolver a “razão lúdica” que é um misto de lucidez com ludicidade.
O que lhe impulsiona nas artes gráficas
(cartum, charge, caricatura e HQ) ?
N
- O que me impulsiona como artista é a necessidade de mostrar o quanto a nossa
sociedade é hipócrita, racista, machista e intolerante. Também procuro
desenvolver novos mecanismos de humor. Acredito que ainda existam novas formas
de fazer humor, fora dos padrões que nós cartunistas dominamos. Busco
permanentemente explorar novos processos associativos, através do texto e da
imagem, na busca incessante do novo.
Você acha que o humor impresso está em
baixa?
N
- Hoje, são poucos os jornais que ainda possuem cartunistas contratados. A
maioria não dispõe desse tipo de profissional e creio que os leitores não
reclamam ou não sentem falta. Com o advento e a massificação da internet os
jornais impressos perderam uma parcela considerável de público e de
publicidade. As tiragens foram gradativamente sendo reduzidas e a publicidade,
a cada ano que passa, vai minguando e vai migrando para a internet. Reduzir
custos é a palavra de ordem e se você reduz custos e se livra de um
profissional como o cartunista, que costuma ter idéias próprias, isso é o ideal
para a mídia impressa. Vale salientar que o bom jornalismo, da maneira como ele
se desenvolveu, está fadado a desaparecer. A maioria dos jornais está preocupada
em garantir a sobrevivência e evita a todo custo desagradar quem esteja no
poder, que possui as verbas publicitárias mais polpudas e suculentas do
mercado. Joseph Pulitzer, o pai do jornalismo como o conhecíamos, costumava
dizer: “com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta
formará um público tão vil como ela mesma”.
No passado você tinha um projeto com
Renato da Silveira de uma HQ passada na Bahia do futuro. Não aconteceu por que?
N
- Além de criar o nome “Chiclete com Banana”, fiz, em parceria com Renato da
Silveira, 15 capas para a banda de Bell Marques. Numa delas, “Tambores
Urbanos”, decidimos bolar uma ponte que ligasse Salvador a Itaparica vista da
ilha para a cidade. Adicionamos prédios futuristas ao perfil da cidade alta e o
resultado ficou inusitado e expressivo, na página central da capa dupla do LP.
Daí, cogitamos a possibilidade de criar uma HQ sobre Salvador que casasse o
passado colonial com uma cidade pós moderna. Como outros projetos foram mais
urgentes, deixamos essa boa idéia de lado.
Você popularizou o desenho de humor à
comunidade através de out door, fez grafites, cartuns e, cada vez mais
minimalista. Essa descoberta veio com uma exposição para crianças em 1983.
Agora essa mostra volta em 2017 onde o universo das artes gráficas renasce.
Fale desse momento.
N
- Sempre busquei explorar novas linguagens para o cartum. Através de um edital
pude espalhar alguns cartuns em out-doors aqui em Salvador. Quando percebi que
existia uma certa censura nos jornais locais, decidi partir para o grafite, que
era uma linguagem que estava em franca expansão no Brasil, que já vivia o fim
da ditadura. A liberdade que essa nova forma de expressão propiciava era
ilimitada, ideal para quem tinha coisas instigantes e provocativas a dizer. O
aprendizado do cartum sintético, sem palavras e atemporal foi útil para o meu
crescimento nessa nova linguagem. O grafite exige agilidade e pede uma
linguagem telegráfica, afim de que seja mais rapidamente assimilada. Percebi a
potencialidade e a liberdade que essa nova forma de expressão me oferecia. O
que era colocado em muros aqui em Salvador, repercutia na Folha de São Paulo,
através da coluna de Joyce Pascowitch, a sucursal daqui, enviava pra ela as
novidades estampadas nos muros locais. Foi um período rico que aproveitei e
reuni em “Quem não risca não petisca”, uma compilação do material grafitado por
mim, nos anos 70.
Quem são hoje os bons chargistas e
caricaturistas?
N
- Acho que não sou a pessoa mais indicada para falar dos bons cartunistas que
estão no mercado. Estou cada vez mais ligado em literatura. Tenho um prazer
enorme em descobrir novos escritores e me debruçar sobre os cânones da
literatura universal. Sei que temos uma quantidade enorme de novos artistas do
traço espalhados por esse país continente. Destaco a qualidade do trabalho do
cartunista Laerte Coutinho e do caricaturista mineiro/baiano Cau Gomez.
A nova geração de humoristas não batalha
ou as portas se fecharam mesmo?
N
- As portas da grande imprensa, daqui pra frente estarão sempre fechadas, e as
portas da Internet estão completamente escancaradas. Culpar a falta de espaço
só alimenta a cultura da reclamação. Prefiro que cada um busque o seu caminho,
invente o seu mundo e vá à luta.
Você tem um livro pra sair agora sobre o
cartunista Lage. Fale sobre essa obra.
N - Hélio Roberto Lage foi um cartunista baiano que trabalhou durante 37
anos no mesmo jornal, a Tribuna da Bahia. Foi uma referência pra muitos
artistas e me influenciou de forma decisiva. Morreu em 2006, aos 60 anos de
idade, e deixou uma enorme quantidade de trabalhos que precisava ser mostrado
para as novas gerações. Decidi, em parceria com a minha filha Alice Lacerda,
fazer uma exposição sobre ele na Caixa Cultural em 2010 e em seguida, achamos que
ele merecia uma publicação à altura do seu talento. Com o material que foi
gentilmente cedido por Marta Lage, Tribuna da Bahia, Bahiatursa, Irderb e a
Fundação Pedro Calmon começamos a tratar as imagens, selecionar os trabalhos e
editar o livro “Lage – 40 anos de humor” que foi lançado em dezembro de 2017
com mais de 200 obras desse genial artista.
Além do livro, há uma mostra sobre os
cartuns do irreverente Lage.
N - A mostra que foi apresentada na Caixa Cultural foi integralmente
doada à Fundação Pedro Calmon para ser montada nas bibliotecas públicas de todo
o estado da Bahia. Vale ressaltar que 200 exemplares do livro “Lage – 40 anos
de humor” foram entregues à mesma Fundação, para serem distribuídos nas
bibliotecas públicas do estado.
E agora, quais são seus projetos para o
futuro?
N
- Estamos em fase de coleta de imagens e textos sobre a livraria Literarte, que
existiu aqui em Salvador nos anos 70/80, e que foi muito importante para a
formação intelectual de uma geração inteira. Através de depoimentos,
entrevistas e de muitas imagens, pretendemos organizar um livro sobre a
livraria, visando preservar a memória da vida cultural baiana.
Além
desse projeto, pretendo continuar lançando meus livrinhos com as
nanodelicadezas, poéticas doces e bem humoradas, tão necessária para os amargos
dias atuais.
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