Cartunista,
poeta, ilustrador, grafiteiro e designer. Nildão começou a publicar seus
trabalhos na década de 1970 e não parou mais. Na época ele e seus colegas
baianos lutavam pelo reconhecimento público do cartum como expressão artística
válida. Na década de 1980 a plasticidade de seus trabalhos explodiu em cores
vivas, degrades e meios tons sensuais. Seus álbuns de humor eram cada vez mais
publicados e popularizados.
No
traço distorcido, contundente, irônico, muitas vezes cruel, outras líricas, que
deforma e informa, Nildão deixou impresso um retrato desse país numa época
marcante de sua história recente. O traço desmascara, escancara, revisa do
avesso e expõe os personagens do nosso dia a dia. Ele condensa sua ação no
desenho e desdenha do verbo. E assim Nildão dá a todos seu toque implacável do
ser humano.
Ele tem mais de 40 anos de carreira e
nesse tempo lançou 22 livros. A irreverência é uma marca da sua obra que
transita pelo universo da poesia sem abandonar a sua veia humorística e uma
visão critica sobre o mundo. E ele segue a máxima, celebrada pela cultura
oriental, de que menos é mais: “De uma coisa/estejamos certos:/quem tem vida
interior/desconhece desertos” (Colíricos, 2005).
Sua obra nos revela um artista gráfico
de respeito profundo pelo trabalho a que se sente chamado. De nanodelicadezas a
falsas logomarcas, de cartuns não verbais a anúncios fictícios e charges
políticas tudo está sob seu trabalho. Nildão continua com olhar atento, a se
debruçar sobre o ridículo dos contentes no coro dos sisudos. Ele impulsiona o
seu humor e o seu crédito no ser humano a paroxismos de traços e contornos de
pessoa, instituição, leis e costumes que o fazem um humorista internacional. O
que há de baiano em Nildão é a sua total irreverência para com o real que, no
caso de nosso país, supera a mais absurda concepção, humorística ou não. E o
absurdo é o seu material de trabalho. Vamos à entrevista:
Houve um tempo em que todos os jornais e
revistas do país, seja da grande imprensa como o da alternativa, publicava uma
série de cartuns e charges. Hoje quase não se vê, o que aconteceu?
NILDÃO - Realmente, o cartum e a charge ganharam certa expressividade no
período da ditadura. Imagino que isso devia-se ao fato deles tecnicamente serem
de mais fácil reprodução gráfica e expressavam o que uma determinada parcela da
população sentia ou gostaria de dizer. Naquela época, tínhamos como elementos
ilustrativos dos jornais, além do cartum, a fotografia, que exigia equipamentos
caros e precisava de um laboratório para as fotos serem reveladas, sendo que
todo esse processo exigia tempo e dinheiro. O cartum era instantâneo, imediato,
saia da prancheta do cartunista direto para a arte final dos jornais. Hoje, os
jornais brasileiros estão comprometidos com determinadas posições políticas, a
liberdade de imprensa ficou cada vez mais restrita, os interesses empresarias
estão acima dos fatos e a presença de um cartunista numa redação passou a ser
um elemento que pode causar desconforto à linha editorial adotada pela empresa
jornalística. O cartum e a charge migraram das páginas dos jornais para as
redes sociais e com isso passaram a ter um público bem maior e mais
diversificado além de ter total liberdade.
Você é o cartunista baiano mais premiado
do Estado, cerca de 14 prêmios, além de 20 livros individuais e sabe que é
impossível viver de humor na Bahia. Mas, ao contrário de vários de seus colegas
de ofício, que buscaram o sucesso em São Paulo e Rio de Janeiro, você enfrentou
o tabu que “santo de casa não faz milagre” e se recusou a migrar. Qual foi o
motivo?
N
- Veja bem, comecei ganhando 3 vezes seguidas o Salão Internacional de Humor de
Piracicaba, o mais importante do país. As premiações só reforçaram a certeza de
que eu estava no caminho certo. Logo depois fui premiado no Salão de Humor de
Pernambuco e logo em seguida, novamente no de Piracicaba. Os prêmios foram
importante como reconhecimento tanto é, que passei a ser convidado para os
Salões de Humor como parte do júri. Daí em diante, nunca mais concorri, por
acreditar que é necessário deixar o espaço para os novos, que precisam, também,
ser premiados, reconhecidos e divulgados.
Com
relação a não sair de Salvador, segui a máxima de Leon Tolstói: “se queres ser
universal começa por pintar a tua aldeia”. Quando comecei a ser premiado nos
Salões de Humor do país estive, por intermédio do saudoso Glauco Vilas Boas, na
redação da Folha de São Paulo mostrando o meu trabalho para alguns editores.
Eles gostaram do que viram e me convidaram para publicar no jornal. Deixei
alguns cartuns com eles e dias depois, foram publicados, inclusive no espaço
dedicado à charge principal. No entanto, eles exigiam que eu morasse em Sampa e
que freqüentasse a Folha diariamente. Desisti do convite e decidi ficar em
Salvador, desenvolvendo de maneira disciplinada a minha linguagem de humor.
Tudo isso aconteceu num período em que não havia a Internet, que hoje, poderia
ser a solução para a questão presencial. Com a rede, o mundo ficou mais próximo
e ao mesmo tempo mais distante. Hoje, pra se fazer sucesso, não precisa estar
nos grandes centros do país, basta talento, disciplina e originalidade. É bom
lembrar que São Paulo é a periferia dos grandes centros mundiais e a Bahia é a
periferia paulista. No entanto, por maior que possa ser a obra e possamos
sonhar alto, devemos começar a mostrar a nossa grandeza em casa.
Você começou a fazer cartuns em 1972,
num dos períodos mais negros da história recente do País. Como foi essa sua
trajetória?
N
- Comecei a publicar em 1972, no extinto Jornal da Cidade. Na época eu era
profundamente influenciado pelos cartunistas do jornal O Pasquim,
principalmente pelo Henfil e Jaguar. Criei os personagens “Guga & Pascoal”
que eram inspirados na estética dos personagens dos Fradim, de Henfil.
Desenhava alguns cartuns políticos, tirando sarro dos militares e abordando
temáticas do dia a dia, que estavam nas manchetes dos jornais, como o aumento
da gasolina, violência urbana, trânsito engarrafado, etc. O incrível é que a maioria
dos temas daquela época, continuam fazendo parte do cotidiano dos brasileiros.
Depois passei a colaborar com jornais alternativos, de sindicatos, associações
de bairro, entidades religiosas, etc.
Quando foi que decidiu partir para
outras experiências, publicações independentes, juntando o útil ao agradável?
N
- Existia aqui em Salvador uma livraria chamada Literarte, criada por Getúlio
Soares Santana no ano de 1978. No ano seguinte tornei-me sócio desse
empreendimento e passei a ativar o espaço organizando mostra de cartunistas
baianos com temáticas de acordo com o calendário. Fizemos uma exposição que
chamava-se “Humor só de mãe”, no mês de maio de 1980 e lançamos cartões de
Natal com a participação de Lage, Setúbal, Helson Ramos, Caó, Aps, Zé Vieira.
Com o passar dos anos, a criação de cartões natalinos feitos por artistas
locais se consolidou, chegando a vender nesse período cerca de 20 mil cartões
de natal. Pela Literarte, em parceria com a Editora Global, em 1980 lancei meu
primeiro livro de cartuns, distribuído por todo o Brasil. O lançamento ocorreu
no dia 9 de setembro e um dado curioso: foi o primeiro lançamento de livro na
Bahia que contou com a divulgação de outdoors. A Literarte não era a maior
livraria da cidade, no entanto era considerada a melhor de Salvador, nos anos
80. Mesmo com o grande sucesso da Literarte, que se transformou num point da
juventude antenada e que fazia parte da vida cultural da cidade, decidi vender
a parte que me cabia e montar o primeiro atelier de humor de Salvador, na Vila
Matos, no bairro do Rio Vermelho. Nesse novo espaço dediquei-me a criação de
cartuns, charges e quadrinhos para a imprensa alternativa, associações de
bairros, movimentos sindicais e entidades civis organizadas. Foi aí que decidi
criar “Bahia, Odara ou Desce”, livro de cartuns coloridos, não verbais e
atemporais sobre o modo de ser do baiano e que terminou se transformando numa
enorme e premiadíssima campanha publicitária da Secretaria de Turismo do
governo do estado da Bahia. Vale salientar, que essa foi a primeira campanha
publicitária baiana criada a partir de um livro já publicado, além de ser uma
das mais premiadas campanhas da propaganda local e, graças à ela participamos
do Festival Publicitário de Cannes, na França.
Você começou a desenhar influenciado por
quem?
N
- Meu primeiro contato com o humor foi através das páginas da revista “O
Cruzeiro”. Na última página desse semanário publicavam um cartum do “O Amigo da
Onça” personagem marcante de autoria de Péricles Maranhão e que teve grande
popularidade nas décadas de 50, 60, 70 do século passado. Após a morte do seu
criador, o personagem continuou a ser publicado pelo Carlos Estevão. O Cruzeiro
também lançou o suplemento de humor semanal “O Centavo” com a participação de
Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Borjalo, etc. Foi através desse
time de talentosos cartunistas que eu comecei a me interessar mais por cartum.
Mais tarde, esse vibrante núcleo de humoristas criou o jornal “O Pasquim”
semanário que revolucionou a minha cabeça e o jornalismo brasileiro. Numa
linguagem coloquial e moderna, os cartunistas do “Pasquim” imprimiram uma marca
original na imprensa brasileira e influenciaram legiões de novos cartunistas
por todo o país.
O humor esta no sangue brasileiro e,
mais ainda, no baiano. O que riem os
baianos?
N - O senso de humor está presente em todas as culturas humanas e as
sociedades que o cultivam com mais intensidade tendem a ser mais leves,
pacíficas e tolerantes. Aqui no Brasil não é diferente: rimos dos poderosos e das
nossas próprias desgraças. Na Bahia, por ser um estado onde predominou a
escravidão, o humor sempre funcionou como uma forma antagônica ao poder.
Através dos chistes, da música e da própria dança, os oprimidos e humilhados
ridicularizavam os poderosos. Com o advento da imprensa em nossa cidade, o
humor se consagrou através de textos, cartuns, caricaturas e quadrinhos,
ressaltando sempre as diferenças sociais e destacando a exploração da maioria
por uma poderosa minoria.
Tanta graça só pode significar que o
Brasil vai mal?
N
- Para o psicanalista Daniel Kupermann, “o humor é uma sabedoria trágica acerca
da própria finitude, pois ele tem a capacidade de nos libertar do medo atávico
que temos do acaso. Ele evita o nosso abatimento perante o infortúnio.” Num
país como o Brasil, onde os infortúnios e as desigualdades saltam aos olhos, o
humor funciona como um exercício de descrença em todas as verdades difundidas
socialmente, libertando o pensamento e a imaginação da moral e dos ideais
dominantes.
A facilidade com que seus cartuns
provocam ranger de dentes em meia dúzia e gargalhadas no resto da população até
dá no que pensar...
N
- Procuro criar meus trabalhos sempre tendo em mente a ridicularização do poder
e a defesa intransigente dos injustiçados e excluídos. Não existe humor a favor
de governos estabelecidos, humor chapa branca não funciona, ele tem que estar
de acordo com as aspirações populares. A meia dúzia que range os dentes,
certamente não quer perder seus privilégios e mamatas, não valoriza a meritocracia
e sempre se deu bem, graças à cordialidade das elites.
Todos os principais desenhistas de humor
no Brasil têm hoje características bem pessoais, definidas, inconfundíveis.
Podemos chamar de estilo. Para chegar ao seu estilo demorou muito?
N - Hoje eu me considero como o Millôr Fernandes: um cartunista sem
estilo. Fui obrigado a aprender a desenhar para que as minhas idéias de humor
ganhassem vida. Não sou um bom desenhista, meu traço é duro e compenso essa
deficiência buscando aprimorar as idéias, indo atrás de temas originais e nunca
explorados por outros artistas do traço. Acredito que a originalidade das
idéias me ajudou a superar a deficiência que tenho como desenhista. Desenvolvi
outras linguagens de humor que não precisam do traço, como as montagens
gráficas, criação de falsos anúncios e logotipos, memes e o uso da palavra,
através das máximas e de pequenos e bem humorados poemas.
Apesar de todos os problemas, a charge
foi uma das formas de humor que mais cresceu na imprensa..
N
- Durante um longo período, a charge política teve uma grande importância nos
jornais impressos de todo o mundo. Aqui no Brasil ela sempre serviu de
referência para os historiadores que pretendem contar a verdadeira história do
Brasil. Por exemplo: Se você quiser ter uma noção clara de como era a política
aqui na Bahia no período que vai de 1970 a 2005, recomendo consultar o trabalho
do chargista Hélio Lage, que revelou de forma irônica e ferina as relações do
poder local, através de suas charges diárias, publicadas na Tribuna da Bahia.
Com
o advento das redes sociais as charges perderam espaço para os “memes”. Os
memes surgiram há poucos anos atrás na internet, num site chamado “4chan”, como
uma forma inusitada de expressão e ficaram tão populares que se tornaram memes,
isto é, algo que vira mania e se reproduz sem controle. Hoje eles dominam a
internet e em parte, substituíram as charges e os cartuns.
(CONTINUA
AMANHÃ)
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