24 abril 2018

Lirismo irreverente na poética cartunística de Nildão (01)



Cartunista, poeta, ilustrador, grafiteiro e designer. Nildão começou a publicar seus trabalhos na década de 1970 e não parou mais. Na época ele e seus colegas baianos lutavam pelo reconhecimento público do cartum como expressão artística válida. Na década de 1980 a plasticidade de seus trabalhos explodiu em cores vivas, degrades e meios tons sensuais. Seus álbuns de humor eram cada vez mais publicados e popularizados.

No traço distorcido, contundente, irônico, muitas vezes cruel, outras líricas, que deforma e informa, Nildão deixou impresso um retrato desse país numa época marcante de sua história recente. O traço desmascara, escancara, revisa do avesso e expõe os personagens do nosso dia a dia. Ele condensa sua ação no desenho e desdenha do verbo. E assim Nildão dá a todos seu toque implacável do ser humano.

Ele tem mais de 40 anos de carreira e nesse tempo lançou 22 livros. A irreverência é uma marca da sua obra que transita pelo universo da poesia sem abandonar a sua veia humorística e uma visão critica sobre o mundo. E ele segue a máxima, celebrada pela cultura oriental, de que menos é mais: “De uma coisa/estejamos certos:/quem tem vida interior/desconhece desertos” (Colíricos, 2005).

Sua obra nos revela um artista gráfico de respeito profundo pelo trabalho a que se sente chamado. De nanodelicadezas a falsas logomarcas, de cartuns não verbais a anúncios fictícios e charges políticas tudo está sob seu trabalho. Nildão continua com olhar atento, a se debruçar sobre o ridículo dos contentes no coro dos sisudos. Ele impulsiona o seu humor e o seu crédito no ser humano a paroxismos de traços e contornos de pessoa, instituição, leis e costumes que o fazem um humorista internacional. O que há de baiano em Nildão é a sua total irreverência para com o real que, no caso de nosso país, supera a mais absurda concepção, humorística ou não. E o absurdo é o seu material de trabalho. Vamos à entrevista:


Houve um tempo em que todos os jornais e revistas do país, seja da grande imprensa como o da alternativa, publicava uma série de cartuns e charges. Hoje quase não se vê, o que aconteceu?

NILDÃO - Realmente, o cartum e a charge ganharam certa expressividade no período da ditadura. Imagino que isso devia-se ao fato deles tecnicamente serem de mais fácil reprodução gráfica e expressavam o que uma determinada parcela da população sentia ou gostaria de dizer. Naquela época, tínhamos como elementos ilustrativos dos jornais, além do cartum, a fotografia, que exigia equipamentos caros e precisava de um laboratório para as fotos serem reveladas, sendo que todo esse processo exigia tempo e dinheiro. O cartum era instantâneo, imediato, saia da prancheta do cartunista direto para a arte final dos jornais. Hoje, os jornais brasileiros estão comprometidos com determinadas posições políticas, a liberdade de imprensa ficou cada vez mais restrita, os interesses empresarias estão acima dos fatos e a presença de um cartunista numa redação passou a ser um elemento que pode causar desconforto à linha editorial adotada pela empresa jornalística. O cartum e a charge migraram das páginas dos jornais para as redes sociais e com isso passaram a ter um público bem maior e mais diversificado além de ter total liberdade.


Você é o cartunista baiano mais premiado do Estado, cerca de 14 prêmios, além de 20 livros individuais e sabe que é impossível viver de humor na Bahia. Mas, ao contrário de vários de seus colegas de ofício, que buscaram o sucesso em São Paulo e Rio de Janeiro, você enfrentou o tabu que “santo de casa não faz milagre” e se recusou a migrar. Qual foi o motivo?

N - Veja bem, comecei ganhando 3 vezes seguidas o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, o mais importante do país. As premiações só reforçaram a certeza de que eu estava no caminho certo. Logo depois fui premiado no Salão de Humor de Pernambuco e logo em seguida, novamente no de Piracicaba. Os prêmios foram importante como reconhecimento tanto é, que passei a ser convidado para os Salões de Humor como parte do júri. Daí em diante, nunca mais concorri, por acreditar que é necessário deixar o espaço para os novos, que precisam, também, ser premiados, reconhecidos e divulgados.

Com relação a não sair de Salvador, segui a máxima de Leon Tolstói: “se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Quando comecei a ser premiado nos Salões de Humor do país estive, por intermédio do saudoso Glauco Vilas Boas, na redação da Folha de São Paulo mostrando o meu trabalho para alguns editores. Eles gostaram do que viram e me convidaram para publicar no jornal. Deixei alguns cartuns com eles e dias depois, foram publicados, inclusive no espaço dedicado à charge principal. No entanto, eles exigiam que eu morasse em Sampa e que freqüentasse a Folha diariamente. Desisti do convite e decidi ficar em Salvador, desenvolvendo de maneira disciplinada a minha linguagem de humor. Tudo isso aconteceu num período em que não havia a Internet, que hoje, poderia ser a solução para a questão presencial. Com a rede, o mundo ficou mais próximo e ao mesmo tempo mais distante. Hoje, pra se fazer sucesso, não precisa estar nos grandes centros do país, basta talento, disciplina e originalidade. É bom lembrar que São Paulo é a periferia dos grandes centros mundiais e a Bahia é a periferia paulista. No entanto, por maior que possa ser a obra e possamos sonhar alto, devemos começar a mostrar a nossa grandeza em casa.


Você começou a fazer cartuns em 1972, num dos períodos mais negros da história recente do País. Como foi essa sua trajetória?

N - Comecei a publicar em 1972, no extinto Jornal da Cidade. Na época eu era profundamente influenciado pelos cartunistas do jornal O Pasquim, principalmente pelo Henfil e Jaguar. Criei os personagens “Guga & Pascoal” que eram inspirados na estética dos personagens dos Fradim, de Henfil. Desenhava alguns cartuns políticos, tirando sarro dos militares e abordando temáticas do dia a dia, que estavam nas manchetes dos jornais, como o aumento da gasolina, violência urbana, trânsito engarrafado, etc. O incrível é que a maioria dos temas daquela época, continuam fazendo parte do cotidiano dos brasileiros. Depois passei a colaborar com jornais alternativos, de sindicatos, associações de bairro, entidades religiosas, etc.


Quando foi que decidiu partir para outras experiências, publicações independentes, juntando o útil ao agradável?

N - Existia aqui em Salvador uma livraria chamada Literarte, criada por Getúlio Soares Santana no ano de 1978. No ano seguinte tornei-me sócio desse empreendimento e passei a ativar o espaço organizando mostra de cartunistas baianos com temáticas de acordo com o calendário. Fizemos uma exposição que chamava-se “Humor só de mãe”, no mês de maio de 1980 e lançamos cartões de Natal com a participação de Lage, Setúbal, Helson Ramos, Caó, Aps, Zé Vieira. Com o passar dos anos, a criação de cartões natalinos feitos por artistas locais se consolidou, chegando a vender nesse período cerca de 20 mil cartões de natal. Pela Literarte, em parceria com a Editora Global, em 1980 lancei meu primeiro livro de cartuns, distribuído por todo o Brasil. O lançamento ocorreu no dia 9 de setembro e um dado curioso: foi o primeiro lançamento de livro na Bahia que contou com a divulgação de outdoors. A Literarte não era a maior livraria da cidade, no entanto era considerada a melhor de Salvador, nos anos 80. Mesmo com o grande sucesso da Literarte, que se transformou num point da juventude antenada e que fazia parte da vida cultural da cidade, decidi vender a parte que me cabia e montar o primeiro atelier de humor de Salvador, na Vila Matos, no bairro do Rio Vermelho. Nesse novo espaço dediquei-me a criação de cartuns, charges e quadrinhos para a imprensa alternativa, associações de bairros, movimentos sindicais e entidades civis organizadas. Foi aí que decidi criar “Bahia, Odara ou Desce”, livro de cartuns coloridos, não verbais e atemporais sobre o modo de ser do baiano e que terminou se transformando numa enorme e premiadíssima campanha publicitária da Secretaria de Turismo do governo do estado da Bahia. Vale salientar, que essa foi a primeira campanha publicitária baiana criada a partir de um livro já publicado, além de ser uma das mais premiadas campanhas da propaganda local e, graças à ela participamos do Festival Publicitário de Cannes, na França.


Você começou a desenhar influenciado por quem?

N - Meu primeiro contato com o humor foi através das páginas da revista “O Cruzeiro”. Na última página desse semanário publicavam um cartum do “O Amigo da Onça” personagem marcante de autoria de Péricles Maranhão e que teve grande popularidade nas décadas de 50, 60, 70 do século passado. Após a morte do seu criador, o personagem continuou a ser publicado pelo Carlos Estevão. O Cruzeiro também lançou o suplemento de humor semanal “O Centavo” com a participação de Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Borjalo, etc. Foi através desse time de talentosos cartunistas que eu comecei a me interessar mais por cartum. Mais tarde, esse vibrante núcleo de humoristas criou o jornal “O Pasquim” semanário que revolucionou a minha cabeça e o jornalismo brasileiro. Numa linguagem coloquial e moderna, os cartunistas do “Pasquim” imprimiram uma marca original na imprensa brasileira e influenciaram legiões de novos cartunistas por todo o país. 
           
O humor esta no sangue brasileiro e, mais ainda, no baiano.  O que riem os baianos?

N - O senso de humor está presente em todas as culturas humanas e as sociedades que o cultivam com mais intensidade tendem a ser mais leves, pacíficas e tolerantes. Aqui no Brasil não é diferente: rimos dos poderosos e das nossas próprias desgraças. Na Bahia, por ser um estado onde predominou a escravidão, o humor sempre funcionou como uma forma antagônica ao poder. Através dos chistes, da música e da própria dança, os oprimidos e humilhados ridicularizavam os poderosos. Com o advento da imprensa em nossa cidade, o humor se consagrou através de textos, cartuns, caricaturas e quadrinhos, ressaltando sempre as diferenças sociais e destacando a exploração da maioria por uma poderosa minoria.


Tanta graça só pode significar que o Brasil vai mal?

N - Para o psicanalista Daniel Kupermann, “o humor é uma sabedoria trágica acerca da própria finitude, pois ele tem a capacidade de nos libertar do medo atávico que temos do acaso. Ele evita o nosso abatimento perante o infortúnio.” Num país como o Brasil, onde os infortúnios e as desigualdades saltam aos olhos, o humor funciona como um exercício de descrença em todas as verdades difundidas socialmente, libertando o pensamento e a imaginação da moral e dos ideais dominantes.

A facilidade com que seus cartuns provocam ranger de dentes em meia dúzia e gargalhadas no resto da população até dá no que pensar...

N - Procuro criar meus trabalhos sempre tendo em mente a ridicularização do poder e a defesa intransigente dos injustiçados e excluídos. Não existe humor a favor de governos estabelecidos, humor chapa branca não funciona, ele tem que estar de acordo com as aspirações populares. A meia dúzia que range os dentes, certamente não quer perder seus privilégios e mamatas, não valoriza a meritocracia e sempre se deu bem, graças à cordialidade das elites. 


Todos os principais desenhistas de humor no Brasil têm hoje características bem pessoais, definidas, inconfundíveis. Podemos chamar de estilo. Para chegar ao seu estilo demorou muito?

N - Hoje eu me considero como o Millôr Fernandes: um cartunista sem estilo. Fui obrigado a aprender a desenhar para que as minhas idéias de humor ganhassem vida. Não sou um bom desenhista, meu traço é duro e compenso essa deficiência buscando aprimorar as idéias, indo atrás de temas originais e nunca explorados por outros artistas do traço. Acredito que a originalidade das idéias me ajudou a superar a deficiência que tenho como desenhista. Desenvolvi outras linguagens de humor que não precisam do traço, como as montagens gráficas, criação de falsos anúncios e logotipos, memes e o uso da palavra, através das máximas e de pequenos e bem humorados poemas.

Apesar de todos os problemas, a charge foi uma das formas de humor que mais cresceu na imprensa..

N - Durante um longo período, a charge política teve uma grande importância nos jornais impressos de todo o mundo. Aqui no Brasil ela sempre serviu de referência para os historiadores que pretendem contar a verdadeira história do Brasil. Por exemplo: Se você quiser ter uma noção clara de como era a política aqui na Bahia no período que vai de 1970 a 2005, recomendo consultar o trabalho do chargista Hélio Lage, que revelou de forma irônica e ferina as relações do poder local, através de suas charges diárias, publicadas na Tribuna da Bahia.

Com o advento das redes sociais as charges perderam espaço para os “memes”. Os memes surgiram há poucos anos atrás na internet, num site chamado “4chan”, como uma forma inusitada de expressão e ficaram tão populares que se tornaram memes, isto é, algo que vira mania e se reproduz sem controle. Hoje eles dominam a internet e em parte, substituíram as charges e os cartuns.


(CONTINUA AMANHÃ)

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