Fazia filmes ao mesmo tempo reflexivos, políticos e formalmente inovadores.
Dava declarações sinceras sobre tudo, sem a preocupação de agradar a ninguém, a não ser à sua integridade intelectual.
Era um sujeito anacrônico.
Para ele, era preciso, urgente,desenvolver o conhecimento da cultura brasileira, vasculhar as raízes, revolver o passado, por mais trabalho que desse.
Num 22 de agosto, há 30 anos, ele morria sem ter completado sua obra, mas deixando atrás de si uma marca profunda de sua viagem pelo horizonte social do País.
“Meu filme – dizia o diretor – é um touro miúra que não se acredita na banheira rubra do toureiro. Miúra, na gíria do cinema nacional, é aquele tipo de filme que pega o espectador pelas orelhas e o encara no olho. Obriga a saber que está vendo, ouvindo e sacando um filme: o miúra não dá tréguas e no final parte da plateia está por terra, outra exaltada, outra vomitada”
Em janeiro de 1971, Glauber viaja para Nova York e inicia um exílio de cinco anos, enquanto a repressão política recrudesce no país. Em 1972 concluiu “Câncer”, um 16mm começado em 1968 no Brasil. Em 1974 o inacabado “Brasil 68” e “História do Brasil”, documentário feito na Itália. Entre 1971 e 74 realiza os super 8 “Leiticia”, “Mossa no Marrocos”, “Super Paloma” e “Viagem com Juliet Berto”. Seu derradeiro trabalho na longa-metragem é “A Idade da Terra” (1978), alegoria de múltiplas interpretações que segundo ele, completaria a trilogia iniciada em “Deus e o Diabo”, e prosseguida em “Terra em Transe”, sintetizando os dois primeiros.
“A Idade da Terra” é filmado em Salvador, Brasília e Rio de Janeiro. Na Bahia, as filmagens despertam polêmicas e sofrem interdições. Segundo o diretor, este épico do Terceiro Mundo mostra um Cristo-Pescador, o Cristo interpretado pelo Jece Valadão; um Cristo-Negro, interpretado por Antônio Pitanga; mostra o Cristo que é o conquistador português, Dom Sebastião, interpretado por Tarcísio Meira; e mostra o Cristo Guerreiro-Ogum de Lampião, interpretado pelo Geraldo Del Rey. Quer dizer, os quatro Cavaleiros do Apocalipse que ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo, recontando o mito através dos quatro Evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João, cuja identidade é revelada no filme quase como se fosse um Terceiro Testamento. E o filme assume um tom profético, realmente bíblico e religioso.
São dele ainda o polêmico curta “Di Cavalcanti” e o ficção “Claro”, feito na Itália em 1975.
TER CORAGEM
Além de cineasta, Glauber Rochas escreveu o romance “Riverão Sussuarana” e dois livros sobre cinema: “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” e “Revolução do Cinema Novo”. Deixa inacabadas duas obras literárias, uma sobre o cinema estrangeiro chamada “O Século do Cinema”, e um romance inspirado na figura do falecido Presidente João Goulart, “Jango”.
“Arte – disse certa vez – só existe quando não há repressão. Mas aqui não se trata só da repressão das leis, dos códigos, da força: há também a repressão interna, o código interno. Escrever um verso é escrever a primeira coisa que vem à cabeça, a primeira loucura, o primeiro desbunde, a primeira imagem. Eu poderia até dizer que arte não tem relação direta com talento, mas sim com coragem. É preciso ter coragem para admirar uma subjetividade caótica, cósmica. Isso não quer dizer que tudo o que for liberado será belo, há uma variação, uma escala. Todo homem tem possibilidade de fazer arte, de liberar arte”.
Artista de esquerda por muitos anos, mas simpatizante recente (na época) do PDS. Nem lógica., nem cartesianismo em Glauber Rocha, somente a ambiguidade e a metáfora: “Contesto a objetividade porque ela é um produto da racionalidade, que nego estruturalmente. Sou metafórico e barroco e assumo isso. A metáfora é a linguagem da poesia, o nível mais profundo da linguagem. E o barroquismo é a incorporação do sexo à vida. O que existe é um reacionarismo linguístico por parte das pessoas. Estão todos condicionados a ouvir o que querem ou o que devem ouvir e eu estou disposto a dizer o que penso, mesmo que erre”. Certo ou errado, em sua volta ao Brasil – ficou quase seis anos no exterior – Glauber Rocha foio incômodo, delirante e polêmico: “Eu vim para confundir”.
A morte da irmã Anecy, em Botafogo, levou-o a antever a sua própria morte: “Eu e minha irmã não nos vendemos à corrupção da TV, mantivemos as nossas posições políticas e ideológicas fora das posições dominantes. Anecy era uma mulher livre e digna, que se recusava a fazer novela. Estão dizendo que estou louco, pelo fato de não poderem compreender a minha dor. Eu tenho um cadáver dentro de casa e o próximo será o meu”. Mais do que dos pulmões, Glauber morreu de de desgosto, envolvido na luta cinematográfica ou, mais do que isso, cultural.
Ainda na capital baiana foi inaugurado no dia 16 de dezembro de 2008 o Espaço Unibanco de Cinema - Glauber Rocha, ex-cine Guarany e ex-cine Glauber Rocha, localizado na Praça Castro Alves. Foi um passo importante na revitalização do centro de Salvador. O novo espaço conta com quatro modernas salas de cinema, com 630 lugares ao todo, uma livraria, um restaurante e um café. A decoração do amplo espaço homenageia o cineasta baiano com painéis de cenas de filmes como “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
Filmografia
1961 Barravento
1964 Deus e o Diabo na Terra do Sol
1967 Terra em Transe
1968 O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (o título internacional é Antonio das Mortes)
1970 Cabeças Cortadas
1971 O Leão de Sete Cabeças
1972 Câncer
1974 – História do Brazyl
1975 Claro
1975 – As Armas e o Povo
1978 A Idade da Terra
Documentários e curta-metragens
1959 - O Pátio
1966 – Amazonas, Amazonas
1966 - Maranhão 66 B
1974 - As Armas e o Povo C
1976 - Di Glauber
1977 - Jorgamado no Cinema
Ao Glauber, uma rocha
Ele não fugia do verso exaltado
nem desfazia o ritmo acelerado
dissolvia tintas fortes, cores soltas
para encher a boca de pedras
e a oração na língua pétalas
que deixava na entrelinhas a fresta.
O enigma do ser humano lhe consumia inteiro
multiplos bardos não lhe dissolvia seu eu
reluzindo espada ativa deixava lira à deriva
mas seus sonhos prolongava suas angústias
e nos desejos, escritos, filmava o infinito.
Eram ousados lances com a seta
que por vezes estava longe da meta
mas nada desanima o eficiente guerreiro
que defendeu a sociedade nos seus versos de poeta.
E o sol castigava a terra, barravento
como câncer, terra em transe
cabeças cortadas de um dragão da maldade
ninguém jamais narrou seu país
com a imagem de um leão das sete cabeças
tinha o verso certeiro à margem dos sábios
mostra sua linguagem de versos barrocos
que pertence à linhagem solta o seu verso alado.
Hoje validaram a imagem, aceitaram sua linguagem
Deus e o Diabo na Terra do Sol
sem medo de choque frontal
mas o verso em sentido inverso
insinuante, claro, o fato, forjado no cerne
o verso passeando feito musa, naquela angústia
e o verbo correndo solto feito criança em desavoroço.
Para muitos o que ele fazia não tinha pé nem cabeça
mas o texto imagem vai deitando e rolando
sem tronco nem membros vai levando
sem nexo nem sexo vai pagando os pecados
buscando sempre o xis da questão.
Escondido êxito aberta exaltação
É Glauber, É Glauber, aquele leão!
(Gutemberg Cruz, dezembro de 2010)
Glauber tinha uma lista de projetos. Pretendia filmar Eça de Queiroz, trabalhava num roteiro sobre o império napoleônico, planejava estudar o estilo manuelino e sonhava até em preparar uma “revolução atlântica”, o que significava, pelos códigos da utopia glauberiana, “abrir as raízes transestéticas de um novo mundo”, ou seja: ele, que levava a vida juntando política e estética, propunha agora separar as duas. Queria sobretudo mergulhar em suas fontes lusitanas. Glauber amava o poeta Fernando Pessoa, o autor de “Mensagem” que ele adotara como lema o verso “louco, sim, louco porque quis grandeza” em homenagem a D.Sebastião que Glauber cultuava. Sebastião foi um ser delirante, misógeno, piedoso e ousado.
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