Ela “foi uma pessoa decisiva no processo
que resultou no reconhecimento do samba de roda pela Unesco em 2005. Participou
do núcleo inicial da equipe de pesquisa e não deixou, desde então, de colaborar
com o povo do samba em vários projetos bem sucedidos”. Quem conta essa história
é o antropólogo e doutor em Musicologia, professor da UFPE, Carlos Sandroni no
prefácio da obra da etnomusicóloga e pesquisadora de samba Katharina Doring, A Cartilha do Samba Chula.
O livro é um projeto da Associação
Sociocultural Umbigada, idealizado por Katharina, em parceria com a Rede das Casas
de Samba e a Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia e
contou com o patrocínio do Natura Musical e da li estadual Fazcultura-Ba. Foi
concebido na continuidade do projeto anterior Cantador de Chula, no qual foi
retratado, em filme e dois CD áudio, a vida e obra de mais de 16 mestres e
mestras do samba chula do Recôncavo.
Katharina queria aprofundar os mistérios
da chula cantada, sua poesia, seus sotaques, sua melodia, as microtonalidades,
entonações, metáforas. Trazer para as próximas gerações esses ensinamentos, os
saberes originais dos mais velho(a)s, dentro de um contexto orgânico, não
acadêmico, na naturalidade e vivência do samba de roda, sua tradição oral, sem
maquiagem e folclorismo, mas na profundeza dos saberes e paixões desses
sambadores.
A cartilha busca um caminho para o
ensino-aprendizagem do samba de roda, gênero de origem africana que vai além
dos quilombos e centros da cultura negra baiana e mostra sua diversidade e
vivacidade em várias regiões do Estado da Bahia.
Samba Chula é uma vertente do samba
tradicional do Recôncavo Baiano, de melodia mais complexa e extensa, no qual os
cantores entoam as chulas – uma forma de poesia musicada, dominada por poucos
mestres sambadores. Os cantadores de chula encontram apoio rítmico no pandeiro
e harmônico nos toques da viola machete, executados pelos poucos tocadores de
viola machete do Recôncavo. A Cartilha do Samba Chula foi gerada a partir dos saberes
de transmissão oral dos cantadores de chula e tocadores de viola, num processo
de ensino-aprendizagem em oficinas realizadas nos municípios de Salvador,
Saubara, São Francisco do onde, Terra Nova e Santo Amaro, durante os meses de
maio, junho e julho de 2015.
Patrocinado pelo Natura Musical, o
projeto realizou atividades cênico-musicais registradas por meio áudio-visuais,
divididas em três modalidades: a viola machete; a chula cantada com pandeiro; e
o samba miudinho e prato-e-faca. O resultado do processo se materializa em dois
CDs, um DVD e um caderno informativo que traz ensinamentos, fotos, textos,
depoimentos dos mestres e transcrições musicais.
A viola machete é uma pequena viola “caipira”
com dez cordas metálicas, dispostas em cinco duplas de cordas no braço do
instrumento. Samba no pé, miudinho, a pesquisadora faz preciosa descrição
poética das sambadeiras, passando pelo olhar de Ruth Landes (Cidades das
Mulheres), Cecília Meireles, Nelson Araújo, Emilia Biancardi, Edson Carneiro,
Ordep Serra, Muniz Sodré e muitos outros. No Brasil, só aqui no Recôncavo que
canta o samba chula, dentro dele possui três ritmos diferentes: o martelo,
tropeiro e o estiva.
O trabalho da pesquisadora traz farto
material sobre os mestres do samba chula como João Saturno de São Braz,
conhecido como João do Boi, uma autoridade no assunto. “As pessoas escutam e sentem
na pele (arrepiada!) o fenômeno, quando João pega no pandeiro e entoa suas
chulas com sua parelha”; Eusebio dos Santos (mestre Nelito), Domingos da
Conceição (conhecido como Domingos Preto), José Afonso Gomes (mestre Zeca Afonso),
Carlos Bispo dos Santos (Paião), Mestre Aloísio e Cristóvão, Antonio e Elsinho,
Pedro e Vortinha, Aureno da Viola, Celino da Viola, Mestre Quadrado, Rimum e
Manteiguinha, Dona Aurinha, Zelita e Nicinha.
A qualidade primordial do samba, segundo
a pesquisadora, é a vontade de reunir, tocar, cantar e dançar, sendo suficiente
a presença de pessoas que queiram e saibam cantar, bater palmas e batucarem
qualquer objeto, disponível para o divertimento e prazer coletivo. Os
sambadores e as sambadeiras antigos que estão acima de 60;70 anos de idade,
agora são chamados de “mestres”, devido à valorização dos mestres das musicas e
culturas populares. Maior parte da cartilha é dedicada aos mestres e mestras de
samba chula, suas histórias de vida, seus ensinamentos, focando nos registros
em áudio, vídeo, foto e textos.
O samba chula está vivo, porque traz as
memórias do passado, mediante a presença encorpada, lúdica e estética, abrindo
caminhos para o vindouro, num fluxo contínuo. O samba chula encontra-se
presente na antiga região da cana que abrange os municípios de São Sebastião do
Passé, São Francisco do Conde, Santo Amaro, Terra Nova, Teodoro Sampaio,
Saubara e Amélia Rodrigues. Pode ser também encontrada em outros municípios,
mas a região acima seria o “coração” do
samba chula, devido ao cultivo da cana, que segundo as histórias dos
sambadores, gerou uma prática vocal de cantar chula.
Para o sambador, marujo, professor e
gestor cultural Rosildo Rosário, desenvolver ações de valorização,
reconhecimento, promoção e de apoio ao
Samba de Roda, é a melhor forma de colaborar com a permanência desse que é sem
dúvida a expressão reveladora da alma do povo do interior da Bahia. “O Samba
vai para além de somente cantar, dançar e tocar; perpassa pelo gesto deter
respeito pelo outro, de compreender o seu momento de interferir somente quando
lhe é permitido, em tempos que pais e professores estão com bastante
dificuldades em lidar com a educação formal (...) O movimento em torno do Samba
de Roda não é para escolarizar o Samba, mas, facilmente pode servir para
Sambarizar a escola”, informou.
O livro pode ser adquirido na Perola Negra (Tel: 3336-6997) que fica
na rua General Labatut, 137, Shopping Colonial, Loja 01, Barris (em frente à Biblioteca
Central). O local é o único em Salvador a vender preciosidades da Bahia
(livros, discos e CDs, DVDs, camisetas, etc). Vale a pena fazer uma visita.
Nenhum comentário:
Postar um comentário