07 novembro 2016

Obra preciosa: A Cartilha do Samba Chula



Ela “foi uma pessoa decisiva no processo que resultou no reconhecimento do samba de roda pela Unesco em 2005. Participou do núcleo inicial da equipe de pesquisa e não deixou, desde então, de colaborar com o povo do samba em vários projetos bem sucedidos”. Quem conta essa história é o antropólogo e doutor em Musicologia, professor da UFPE, Carlos Sandroni no prefácio da obra da etnomusicóloga e pesquisadora de samba Katharina Doring, A Cartilha do Samba Chula.

O livro é um projeto da Associação Sociocultural Umbigada, idealizado por Katharina, em parceria com a Rede das Casas de Samba e a Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia e contou com o patrocínio do Natura Musical e da li estadual Fazcultura-Ba. Foi concebido na continuidade do projeto anterior Cantador de Chula, no qual foi retratado, em filme e dois CD áudio, a vida e obra de mais de 16 mestres e mestras do samba chula do Recôncavo.

Katharina queria aprofundar os mistérios da chula cantada, sua poesia, seus sotaques, sua melodia, as microtonalidades, entonações, metáforas. Trazer para as próximas gerações esses ensinamentos, os saberes originais dos mais velho(a)s, dentro de um contexto orgânico, não acadêmico, na naturalidade e vivência do samba de roda, sua tradição oral, sem maquiagem e folclorismo, mas na profundeza dos saberes e paixões desses sambadores.

A cartilha busca um caminho para o ensino-aprendizagem do samba de roda, gênero de origem africana que vai além dos quilombos e centros da cultura negra baiana e mostra sua diversidade e vivacidade em várias regiões do Estado da Bahia.

Samba Chula é uma vertente do samba tradicional do Recôncavo Baiano, de melodia mais complexa e extensa, no qual os cantores entoam as chulas – uma forma de poesia musicada, dominada por poucos mestres sambadores. Os cantadores de chula encontram apoio rítmico no pandeiro e harmônico nos toques da viola machete, executados pelos poucos tocadores de viola machete do Recôncavo. A Cartilha do Samba Chula foi gerada a partir dos saberes de transmissão oral dos cantadores de chula e tocadores de viola, num processo de ensino-aprendizagem em oficinas realizadas nos municípios de Salvador, Saubara, São Francisco do onde, Terra Nova e Santo Amaro, durante os meses de maio, junho e julho de 2015.

Patrocinado pelo Natura Musical, o projeto realizou atividades cênico-musicais registradas por meio áudio-visuais, divididas em três modalidades: a viola machete; a chula cantada com pandeiro; e o samba miudinho e prato-e-faca. O resultado do processo se materializa em dois CDs, um DVD e um caderno informativo que traz ensinamentos, fotos, textos, depoimentos dos mestres e transcrições musicais.

A viola machete é uma pequena viola “caipira” com dez cordas metálicas, dispostas em cinco duplas de cordas no braço do instrumento. Samba no pé, miudinho, a pesquisadora faz preciosa descrição poética das sambadeiras, passando pelo olhar de Ruth Landes (Cidades das Mulheres), Cecília Meireles, Nelson Araújo, Emilia Biancardi, Edson Carneiro, Ordep Serra, Muniz Sodré e muitos outros. No Brasil, só aqui no Recôncavo que canta o samba chula, dentro dele possui três ritmos diferentes: o martelo, tropeiro e o estiva.

O trabalho da pesquisadora traz farto material sobre os mestres do samba chula como João Saturno de São Braz, conhecido como João do Boi, uma autoridade no assunto. “As pessoas escutam e sentem na pele (arrepiada!) o fenômeno, quando João pega no pandeiro e entoa suas chulas com sua parelha”; Eusebio dos Santos (mestre Nelito), Domingos da Conceição (conhecido como Domingos Preto), José Afonso Gomes (mestre Zeca Afonso), Carlos Bispo dos Santos (Paião), Mestre Aloísio e Cristóvão, Antonio e Elsinho, Pedro e Vortinha, Aureno da Viola, Celino da Viola, Mestre Quadrado, Rimum e Manteiguinha, Dona Aurinha, Zelita e Nicinha.
 
A qualidade primordial do samba, segundo a pesquisadora, é a vontade de reunir, tocar, cantar e dançar, sendo suficiente a presença de pessoas que queiram e saibam cantar, bater palmas e batucarem qualquer objeto, disponível para o divertimento e prazer coletivo. Os sambadores e as sambadeiras antigos que estão acima de 60;70 anos de idade, agora são chamados de “mestres”, devido à valorização dos mestres das musicas e culturas populares. Maior parte da cartilha é dedicada aos mestres e mestras de samba chula, suas histórias de vida, seus ensinamentos, focando nos registros em áudio, vídeo, foto e textos.

O samba chula está vivo, porque traz as memórias do passado, mediante a presença encorpada, lúdica e estética, abrindo caminhos para o vindouro, num fluxo contínuo. O samba chula encontra-se presente na antiga região da cana que abrange os municípios de São Sebastião do Passé, São Francisco do Conde, Santo Amaro, Terra Nova, Teodoro Sampaio, Saubara e Amélia Rodrigues. Pode ser também encontrada em outros municípios, mas a região acima seria o “coração”  do samba chula, devido ao cultivo da cana, que segundo as histórias dos sambadores, gerou uma prática vocal de cantar chula.
 
Para o sambador, marujo, professor e gestor cultural Rosildo Rosário, desenvolver ações de valorização, reconhecimento,  promoção e de apoio ao Samba de Roda, é a melhor forma de colaborar com a permanência desse que é sem dúvida a expressão reveladora da alma do povo do interior da Bahia. “O Samba vai para além de somente cantar, dançar e tocar; perpassa pelo gesto deter respeito pelo outro, de compreender o seu momento de interferir somente quando lhe é permitido, em tempos que pais e professores estão com bastante dificuldades em lidar com a educação formal (...) O movimento em torno do Samba de Roda não é para escolarizar o Samba, mas, facilmente pode servir para Sambarizar a escola”, informou.

O livro pode ser adquirido na Perola Negra (Tel: 3336-6997) que fica na rua General Labatut, 137, Shopping Colonial, Loja 01, Barris (em frente à Biblioteca Central). O local é o único em Salvador a vender preciosidades da Bahia (livros, discos e CDs, DVDs, camisetas, etc). Vale a pena fazer uma  visita.

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