25 agosto 2016

Na terra das igrejas e dos pecados


Quando os portugueses aqui chegaram, cheios de sarnas, desdentados e podres de não tomar banhos,
ficaram maravilhados com todo aquele cenário da natureza. Eles vinham das terras sem males, das terras frias e encontraram um povo bonito e disponível, sexualmente disponível, sem pecado também abaixo do Equador. Pois bem, a epidemia falou mais alto e a mistura de raças aconteceu de bom e mau grado. Naquela época não havia essa coisa de pecado, de proibição aqui em nossas bandas. Quase tudo era permitido. Mas os raivosos jesuítas chegaram e resolveram não só escrever uma gramática tupi como impuseram aquela ideia da ressurreição de Cristo, morte e ressurreição. A ideia, tempos mais tarde (e bote tarde nisso) era vender todo tipo de produto religioso a cada esquina ou ruela da cidade.

Em seguida Tomé de Souza começou a construção de Salvador e nos séculos seguintes transformou Salvador num grande púlpito de igreja. É igreja por tudo quando é lado e um terror violento de pecado. Até o virulento Gregório de Mattos, o Boca do Inferno cantou “Triste Bahia, oh, quão dessemelhante.../estás e estou do nosso antigo estado/pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado/rico te vejo eu, já tu a mim abundante/Triste Bahia, oh, quão dessemelhante/a ti tocou-te a máquina mercante/que em tua larga barra tem entrado/a mim já foi-me trocando e tem trocado/tanto negócio e tanto negociante”. Era assim que o mordaz Gregório via a localidade: dessemelhante, diferente, desigual, injusta nas oportunidades que oferece aos seus filhos. Mudou alguma coisa de lá pra cá?

O nosso quotidiano oferece tantas sugestões eróticas, como nossa mania de falar tocando nas pessoas (e haja toque), o riso fácil (há há há), as roupas sumárias (graças ao verão o ano inteiro como professa a propaganda), nossa despreocupada habilidade de pontuar as frases com palavrões.... O estrangeiro vem triste,
buscando algo perdido e, aí no caso, o que está perdido é a sua sexualidade espontânea. Em luto, tem que rir do efeito cômico do gesto obsceno e esquece sua dor. Ensinamos ao estrangeiro triste a nossa técnica de apaziguamento da dor. Terminamos por acreditar que não temos dor, nós mesmo e, como bons fingidores, fazemos o nosso ouvido acreditar que nós não sofremos repressão e que estamos acima do bem e do mal (haja melhoral).

A cor vermelha no início da descoberta de nossas terras vinha da tinta extraída do pau-brasil. E vermelho é o sangue que derramou dos índios em defesa de suas terras. Embora o católico e o  protestante são religiões hoje tranqüilas e pacíficas, nelas existiu o espírito da intolerância, do fanatismo e do assassinato. E se hoje podemos ser levados a crer que o fanatismo é próprio de uma religião particular, o islamismo, na verdade ele aparece em todas as fés monoteístas.

Quando Salvador foi fundada em 1549 a ideia principal do projeto português era torná-la não apenas uma cidade fortaleza, mas o mais importante símbolo do império português nas Américas. Por conta da sua história sociopolítica, a Bahia se transformou num território multifacetado.

A combinação de lentidão, tranquilidade e a sensação de acolhimento e segurança provocada pela natureza local foi um dos principais motivos da escolha deste sítio como sede da capital colonial. Assim Salvador passou a ser porta de passagem, local de troca, de efetivação de contatos e relações, ponto para onde convergia boa parte da produção regional, que daí escoava para outras cidades, estados e países.

E as formas de saudar o sagrado (seja com palavras, ações ou uso de objetos) seja nos rituais católicos ou religiosidade de origem africano, as duas tradições aparecem convivendo ou justapostas. O sincretismo é a grande marca de religiosidade local. A mistura foi um resultado natural da convivência entre duas tradições ricas (a ibérica, católica e a africana com a religião dos orixás
nagós). Para muitos o sincretismo foi um recurso que os negros encontraram para salvaguardar suas tradições. A beleza da cidade, do imenso mar azul, das igrejas e sobrados reduziram o estrangeiro. O povo com seus costumes e festas foi outro fator decisivo para eles se estabeleceram aqui. “O tesouro perdido foi encontrado” e “se o mundo é dos que sonham, toda lenda é pura verdade”.

Os hábitos alimentares afro-baianos, o modo de celebrar, a habilidade para a dança e a festa como construtora de identidade, conquistando uma participação expressiva seduziu a todos. Se a motivação é fundamentalmente religiosa  pouco importa, basta seguir o cortejo de Santa Bárbara, atravessar a de Nossa Senhora da Conceição da Praia, Boa Viagem, Bom Jesus dos Navegantes, Lapinha, Bonfim, Ribeira, Rio Vermelho, Itapuã, Pituba até cair no som contagiante do trio elétrico ou no afoxé do Carnaval. É Festa que não acaba mais.

E essa aglomeração de turistas e baianos gera economia para o estado e a roda roda nas mais diversas formas de lucrar com a festa, seja sofisticando os serviços ou mesmo nas atrações musicais. Haja celebração. E é nessa festa carnavalesca que o mundo inverte em direção à alegria, à liberdade, à abundância e à igualdade de todos perante a sociedade. Pura ilusão, quando passa, tudo volta ao que era antes no quartel de Abrantes. A festança é uma catarse da sociedade.
 
E as práticas lúdicas continuam a movimentar a população numa esquina e ruelas da cidade, seja Pelourinho (Olodum), Candeal (Timbalada) ou Curuzu (Ilê Aiyê). O bom humor, disposição para celebrar com entusiasmo a vida, é uma forma de pensar e encarar os problemas da vida, o jeito baiano de ser. Mas falta ainda a este povo (faixa pobre que é formada pela maior parte da população) acesso à educação, ao mercado formal de trabalho, a condições mínimas de moradia e assistência em saúde. Talvez o maior ensinamento dos baianos é encarar a vida, na capacidade de não ter pressa, de não se aborrecer à toa e de conseguir ser alegre apesar de pobreza.

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