“Em algum lugar entre a natureza e a
cultura, a tradição e a invenção, a história e o anacrônico, a obra
de Caymmi
guarda um mistério tanto mais recôndito quanto mais exposto, na simplicidade
plenamente oferta de suas canções”. A opinião é do poeta e letrista Francisco
Bosco que traça o retrato de Dorival Caymmi no livro da série “Folha explica”,
dedicado ao compositor baiano. Bosco esquadrinhou a obra caymmiana em “sambas
sacudidos”, “canções praieiras” e “sambas canções”. Viajando com propriedade e
na medida certa sobre um artista cuja singularidade compara à Clarice Lispector
na literatura e Iberê Camargo nas artes plásticas.
A obra, pequena quantitativamente e
imensa qualitativamente, é formada, em sua maior parte, por clássicos da canção
popular brasileira. Segundo Bosco, os princípios composicionais norteadores da
obra caymmiana são sinceridade, simplicidade e elaboração. “Em sentido geral, a
obra de Caymmi é feliz, afirmativa e solar, apresenta uma Bahia pré-industrial,
alegre e sensual”.
A obra de Caymmi não tem antes nem
depois na tradição da canção popular brasileira. “Um estilo inconfundível quase
sem seguidores na música popular brasileira”, comenta o pesquisador André
Diniz. “Não tendo antecessores, imprimiu sua marca inconfundível em tudo o que
fez (...) Caymmi não se filia a nenhuma corrente, escola ou modismo”, declarou
outro pesquisador, Jairo Severiano. “Ele é um autor inaugural. A música dele, e
como ele casa música e letra, com tanta maestria, é sem igual na MPB”,
enfatizou Chico Buarque. Para Francisco Bosco, Caymmi é um grande mestre
cancionista porque, justamente, pensa e cria a canção levando em conta essa
totalidade indiscernível. “Dentro de sua obra tem –se a impressão de que letra
e música nasceram juntas, ou antes, nunca nasceram – sempre existiram”.
Vamos nos deter aos sambas sacudidos,
repletos de remelexos e requebrados. Para muitos, as ladeiras de Salvador entre
a Cidade Baixa e a Cidade Alta pode ter sido de extrema importância para os
sambas de Caymmi. Foram elas as principais responsáveis pela beleza das pernas
e os glúteos torneados das baianas. Caymmi, como afirma Antonio Risério, “é o
poeta do bumbum em movimento”. A vizinha quando passa “mexe com as cadeiras pra
cá/mexe com as cadeiras pra lá/ela mexe com o juízo/do homem que vai trabalhar”
(A Vizinha do Lado). E “quando você se requebrar/caia por cima de mim” (O Que é
Que a Baiana Tem?).
E sondando o segredo do samba de Caymmi,
Francisco Bosco descobre que o requebrado das
mulheres em Caymmi possui uma
qualidade especial, “trata-se de um rebolado gracioso, a um tempo sensual e
discreto, extremamente feminino, poderoso e consciente de seu poder, mas como
que brejeiro, delicado, sutil”. Até chegar a palavra chave desse
feminino-poderoso: o dengo. “O dengo é a qualidade presente em todos os gestos
e movimentos da mulher: ´É dengo, é dengo, é dengo, meu bem!/é dengo que a nega
tem/tem dengo no remelexo, meu bem!/tem dengo no falar também//-Quando se diz
que no falar tem dengo/-tem dengo!tem dengo! tem dengo! tem.../-quando se diz
que no andar tem dengo/-tem dengo! Tem dengo! Tem dengo!tem.../-quando se diz
que no sorrir tem dengo(...)/-quando se diz que no sambar tem dengo (...)´.”.
Em sua biografia sobre o avô (Dorival
Caymmi, Cancioneiro da Bahia, Stella Caymmi), o compositor comenta a
singularidade do dengo, procurando relacioná-lo a um certo mudus vivendi
baiano: “Não sei de palavra tão bonito quanto ´dengo´. Dengo...Denguice...dengosa...Palavras
que dizem muita coisa, que definem, por vezes, a personalidade de uma mulher. O
sol do Nordeste, aquele calor das tarde pedindo rede e água de coco, pedindo
cafuné e dando ao corpo certa moleza gostosa, produz o dengo, que por vezes está
apenas no quebranto de um olhar, às vezes na modulação da voz terna, de súbito
no gesto, como um convite. Não sei definir certas mulheres senão pelo dengo que
possuem”.
Com o diz o letrista Aldir Blanc, “o
Dorival foi quem inventou o gênero `samba Caymmi`(...). Perguntar se existe
estilo de samba é como duvidar da existência do vatapá”. “Se “com qualquer dez
mil-réis e uma nega” se faz um vatapá, com que ingredientes se faz, então, o
samba Caymmi? Aldir Blanc dá o recado: “um bocadinho mais de sensualidade, uma
pitada generosa de preguiça da boa, sorrisos morenos de Dora, das Rosas e da
Marina (no Brasil, as louras também são morenas), roupa branca em pele escura,
brisa de mar, a ousadia das jangadas, ciúmes, dengos, uma vasta dose de
sacanagem, rir como quem reza em 365 igrejas (..). Sensualidade, preguiça,
mulheres, dengo e religiosidade estão nos sambas de Caymmi”.
“O samba de Caymmi - escreveu Bosco – é
`sacudido`, `rebolado´, buliçoso; deixa a gente mole e,
quando se samba, todo
mundo bole. Através da qualidade feminina do dengo, tornada um princípio
estético, pode-se entender um aspecto decisivo da singularidade do samba de
Caymmi”. E Francisco diz mais: “Simples, coloquiais, apimentados, dengosos,
rebolados, os sambas de Caymmi possuem aquela que seja talvez a virtude maior
da canção popular: provocam a vontade de ouvi-los e reouvi-los, de decorá-los
(o que se faz sem se dar conta) e cantá-los e cantá-los e cantá-los. São
canções que parecem anônima, parecem ter surgido espontaneamente das igrejas, dos
sobrados, das ladeiras, do dendê, do vatapá, do requebrado das baianas”. O
encantamento da obra de Caymmi vem da representação de uma Bahia alegre,
sensual, solar, mestiça, erótica, bela, em suma, feliz. “Não sou de dores nem
queixas”, diria Caymmi, já do alto de seus noventa anos.
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