Duas guerras
mundiais não aniquilaram
o senso do cômico.
O riso do século
XX é humanista.
É um riso de
humor, de compaixão
e, ao mesmo tempo,
de desforra. Como escreve
Georges Bataille,
“só o humor responde
todas as vezes à
questão suprema sobre
a vida humana”,
e sem ele os
sofrimentos do século
seriam ainda mais insuportáveis.
Depois, a
epidemia do riso
atingiu a religião
– sobretudo o cristianismo,
porque o islamismo
continua, tragicamente,
a levar-se a sério.
A democracia
moderna aprendeu esta
lição da história:
um poder que não
aceita a zombaria é
um poder ameaçado,
desprezado, votado a
desaparecer. Só se
zomba daquilo que ainda
inspira algum respeito:
o cúmulo do desprezo
é a indiferença.
As democracias modernas
aceitam o contrapoder
do riso porque avaliaram
sua utilidade.
Hoje, a
obsessão festiva é
outra sinal do triunfo
ambíguo do riso.
A festa gregária sufoca
o indivíduo,única base
de um humor autêntico.
A festa é, por
essência, coletiva e
anti individualista, a pessoa
se perde no grupo.
Neste inicio do século
XXI o riso está
em toda parte, mas
volta ao vazio. O
que, outrora, fazia o
vigor do cômico era
o contraste com o
riso: seriedade do Estado,
da religião, do sagrado,
da moral, do trabalho,
da ideologia. Esse contraste
atualmente se atenuou
em proveito de um
mundo raso, o da
sociedade humorística,
da qual Gilles Lipovetski
deu uma bela descrição
em A Era do
Vazio.
Sob a
aparência hedonista
e narcisística, a
sociedade humanística
revela-se profundamente
anti individualista. Ele bajula
a pessoa para melhor
neutralizá-la. O riso
tem seu lugar nesse
impulso de gregarismo.
Um riso inofensivo,
desarmado, desligado,
um riso cordial, fun,
descontraído. A regra
é ser engraçado
e original o suficiente
para não chocar. A
indiferença e a
desmotivação de massa,
a ascensão do vazio
existencial é a
extinção progressiva
do riso nos fenômenos
paralelos – por toda
parte é a mesma
desvitalização que aparece,
a mesma neutralização
das emoções, a mesma
auto-absorção narcisística.
Estamos no fim
do riso? Responda caro
leitor, entre também
nessa discussão..
Riso, o elixir da longa vida
O homem
é a única criatura
que ri e sabe
que a morte é
uma certeza absoluta.
Os antigos filósofos
defendiam o riso
como manifestação pessimista
diante da dramaturgia
absurda que é
a vida. Em seu
livro “O Riso. Ensaio
sobre a significação
da comunidade”, o
estudioso Henri Bergson
(1859/1941) é dono
da tese do riso
como trote social. O
riso embute o sentido
de humilhar alguém. Daí
o formato mais perto
da vida social seria
a comédia, não o
drama.
De Aristóteles
a Hobbes, de Platão
a Georges Bataille,
foram inumeráveis e
quase infinitas as tentativas
de conceituação do
humor. Na Grécia antiga,
o humor estava no
centro da sociedade,
nos rituais de sacrifício,
danças e cultos, nos
sagrados festivais
báquicos, nas procissões
orgiásticas. Na Idade
Média, por sua vez,
o humor também se
expressa como representação
essencialmente pública, uma
prática coletiva de
vilarejos, praças e
igrejas, como as
festas cristãs da celebração
dos mistérios da Paixão,
da Páscoa e do
Natal. Ele integra a
conjunto de práticas
para as legítimas
expressões próprias da
época – exorcismos, conquistas,
misérias, fantasias.
A commedia dell´arte
nasce na Itália no
século XVI e se
consolida no século
seguinte na França
como gênero teatral distinto
do teatro medieval.
A partir
do século XVII a
tragédia se afirma
como gênero “de conteúdo”
e assim desqualifica
a comédia, o humor
e o riso como
fontes de informação
sobre o real. À
medida que o sério
na Idade Clássica passa
a ser condição de
credibilidade para conteúdos
que pretendem exprimir verdades,
o humor perde essa
sua característica positiva
e universal.
Na Antiguidade,
na Grécia ou em
Roma, na Idade Média
e no Renascimento,
tempos em que a
razão não havia ainda
espalhado certezas pelo
mundo, o humor como
produtor e veículo
de verdade ocupa um
espaço central no cotidiano
da sociedade. Assim, a
afirmação do poder
absolutista na política,
do capitalismo que
o financiava na economia
e do discurso da
razão na ciência e
na cultura, marcam a
decadência da festa,
da celebração e do
riso como portadores
da verdade.
O
humor produz
desordem na
ordem da
razão
A função
do humor não é,
imediatamente, provocar o
riso, como supõe a
razão, mas é, também,
de secontrapor
a ela como instância
privilegiada exclusiva
da verdade. Assim, “o
humor não é resignado,
mas rebelde” como dizia
Freud. Assim, no século
XVII, a razão troca
as difusas verdades universais
espalhadas pela sociedade
por verdades oficiais,
ancoradas pelo poder
absolutista.
Desse modo,
todas as práticas que
anarquicamente enunciavam
as verdades que eram
capazes de formular
(os loucos, alquimistas,
astrólogos, bruxos) ficam
esvaziadas, portadoras
de um saber sem
conteúdo, perdendo a
positividade de seus
discursos, o controle
de seus dizeres e
a ordem de seus
prazeres. São postas
à margem da sociedade
e da cultura como
difusoras de práticas
negativas porque marcadas
pela ausência da razão.
O humor produz desordem
na ordem da razão.
Festas populares
(como o Carnaval)
e quaisquer manifestações
profanas são proibidas.
Os ditos loucos também
foram aprisionados, afinal
de contas, é deles
o riso mais libertário.
O clero toma a
dianteira nessa campanha
conservadora. Baixa-se uma
espécie de código
na tentativa de abafar
as gargalhadas. A
alegria passa a
ser crime.
“O
riso moderno
existe para
mascarar a perda
do sentido”
A Idade
Média, dominada pela Igreja,
foi uma época de
tristeza. De maneira
oposta, o Renascimento,
foi o grande momento
da liberação do riso.
A Contra Reforma não
viu com bons olhos
o humor. Vários teólogos
pensavam que o
homem deveria evitar o
riso por causa de
sua condição pecaminosa.
O clero era instruído
a não provocar o
riso durante os serviços.
Há um tempo de
chorar e um tempo
de rir, diz a
Bíblia, e os
escritores moralistas
repetiram o veredicto:
“Agora é o tempo
de chorar e no
céu será o tempo
de rir”. O
cristão deveria apenas
esperar até a
redenção dos pecados
na Jerusalém sagrada, onde
encontraria o único
riso natural. Esse pessimismo
agostiniano fez com
que os religiosos
condenassem o riso.
Os filósofos
Hegel (1770/1831) que
não queria rir, Schopenhauer
(1788/1860) pessimista
erabugento, e Nietzsche
(1844/1900) ao contrário,
decretou o riso
escancarado. Assim gargalhou
Zaratustra e com
o crepúsculo dos ídolos
nascia o popular “quem
ri por último ri
melhor”. O historiador
Georges Minois relata
na sua “História
do Riso e do
Escárnio” que há
um divórcio entre as
folias modernas e o
riso – o sujeito agora
se perde totalmente
no grupo -, ao
contrário de antigamente,
quando a farra era
associada ao riso
em razão do seu
caráter excepcional,
que permitia estabelecer
um deslocamento da
norma. A festa tecno
(raves) seria apenas
uma busca fetichista
do sagrado. “Não é
irônico ver multidões
laicas viverem a festa
tecno como uma verdadeira
missa?” é a pergunta
que nos deixa para
uma reflexão.
“O
riso moderno existe para
mascarar a perda
do sentido. É mais
indispensável que nunca”,
esta é uma das
conclusões a que
chega Minois em seu
livro. Para outros, o
riso é um elixir
de longa vida. Afinal,
neste milênio marcado pelo
estresse, desigualdades
sociais e idas
rotineiras ao divã
do analista, o humor
comparece e se
afirma como uma variável.
Bom humor é necessário.
Já para o sociólogo
Gilles Lipovetski o riso
perdeu sua força. No
seu livro “A Era
do Vazio” ele atesta:
“Um novo estilo descontraído
e inofensivo, sem
negação nem mensagem,
apareceu. Ele caracteriza
o homem da moda,
do texto jornalístico,
dos jogos radiofônicos,
televisivos, do bar...”.
Para ele não há
mais festa do espírito
no riso, a esculhambação
dionísica deu lugar
ao “cool”.
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