11 maio 2016

Sociedade humorística (02)

A grande ofensiva político-religiosa do sério começa na metade do século XVI e vai até o século XVIII. A aliança da Igreja triunfante e uma monarquia absoluta não poderia tolerar as bufonarias populares que colocam o mundo do avesso. O riso torna-se suspeito. Assim, a palavra de ordem de uma Europa consciente da necessidade de restaurar a ordem ameaçadas pelas fortes sacudidas das descobertas e das Reformas é que o riso é desordem.

O riso deve ser eliminado das altas esferas da cultura e da espiritualidade em proveito do solene, do grandioso, do imponente, da nobreza. A hora é do majestoso. É preciso terminar com o riso obsceno e subversivo do Carnaval e de outras festas populares. Mas as resistências fazem-se sentir um pouco por toda parte.

Se para Rabelais todo mundo pode rir, para Voltaire o mundo é risível. Na Renascença, todos podem rir, com acentos diferentes, porque o riso é próprio do homem e essência de vida. Na época clássica, muitos não riem mais: os responsáveis, as autoridades defendem a ordem, a grandeza, a imobilidade das instituições, valores e crenças de um mundo, enfim, civilizado. Essa atitude exige seriedade, que o riso é o movimento, o desequilíbrio, o caos. O riso é, portanto, relegado à oposição. Reduzido à função crítica, de escárnio, de zombaria, ele se torna ácido.

A era da desvalorização cômica (primeira metade do século XVII) fracassa porque o riso não morreu, ele se transformou em razão da evolução cultural global. O riso ora se torna espetáculo ora instrumentori-se às gargalhadas e mata-se em duelos; zomba refinadamente e assassina-se por uma tirada de espírito. O riso torna-se, antes de tudo, um instrumento de crítica social, política e religiosa. O riso polido se transforma em zombaria nos séculos XVII e XVIII. Todos os risos, sonoros ou insinuados, altos ou abafados, participam, em última instância, da consolidação de ordem social, moral e política, desempenhando a função de válvula de escape.

Não é pela cólera, é pelo riso que se mata

A vida política no século XIX, que avança de maneira caótica em direção à democracia, necessita do escárnio, uma vez que o debate livre não pode prescindir da ironia. Riso e democracia são indissociáveis. O riso de combate, o riso partidário, conhece, portanto, um extraordinário renascimento no século XIX. Os métodos grosseiros de intimidação e de repressão são largamente empregados, mas os regimes parlamentares recorrem a soluções mais sutis, e o slogan romanopão e circoretorna com toda a força. As relações entre a religião e o riso não melhoram no século XIX. Na Igreja Católica, em particular, os rostos nunca estiveram tão franzidos. A Igreja, encenada, criticada, confrontada com a ascensão das ciências e do ateísmo, encolhe-se, crispa-se sobre seus valores e responde ao mundo moderno com o anátema. Mais que nunca, o riso é diabólico.

O filósofo Hegel abre o século XIX com desconfiança em relação ao riso em sua seriedade dialética. Kierkegaard apresenta o riso do desespero e Arthur Schopenhauer afirma que o pessimismo não é inimigo do riso, ao contrário. Mas o grande sopro da gargalhada niilista atravessa a obra de Nietzsche  e apresenta o riso destrutivo:Não é pela cólera, é pelo riso que se mata. Bergson apresenta sua mecânica social do riso:O cômico é inconsciente. Sigmundo Freud interessa-se pela questão e no humor a forma mais acabada do triunfo do eu. O humor temalguma coisa de sublime e de elevado.... Assim na primeira metade do século XIX, o mundo interpretado pelo riso é a visão do grotesco romântico. E na segunda metade do século, é uma visão do absurdo derrisório.

O riso é satânico, logo, é profundamente humano, escreve Baudelaire em seu tratado Da essência do riso. Toda a obra de Victor Hugo ilustra a ambiguidade do riso. O mundo riu de tudo, dos deuses, dos demônios e, sobretudo, de si mesmo. O riso foi o ópio do século XX, de Dada aos Monty Pythons. Essa doce droga permitiu à humanidade sobreviver a suas vergonhas. Assim o riso tornou-se o sangue e a respiração dessa sociedade humorística que é a nossa. Não como escapar dele: o riso é obrigatório, os espíritos tristonhos são postos em quarentena, a festa dever ser permanente.

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