Foi há vinte anos que ocorreu um trágico episódio, alguns meses depois do meu nascimento, assinalado pelo trágico desfecho da vida de um presidente da República. Esse presidente chamava-se Getúlio Dornelles Vargas. Chegara à chefia da nação na crista da única revolução vitoriosa da Velha República, a 24 de outubro de 1930. Duas vezes foi eleito presidente constitucional: em 1934 pela assembleia Nacional Constituinte; e em 1950 pela maioria do povo, em sufrágio direto. Por largo período, deteve em suas mãos o poder ditatorial. E envelheceu. Ou melhor, amadureceu no exílio em sua própria terra, na estância de Santos Reis, onde vivera a infância e se preparava para a nova, segunda e última presidência.
O mês de agosto não fora favorável a Vargas. O processo revolucionário brasileiro, que o trouxera na crista da onda, 24 anos atrás, novamente o elevara acima de todos, em uma evidência perigosa. A segunda presidência foi o período mais importante de seu longo domínio da política brasileira. A guerra fria, a bipolarização econômica e o toque dos dois imperialismo, russo e norte-americano, apresenta conotações importantes com o que aconteceu no Palácio do Catete, na manhã de agosto de 1954.
Desta vez, porém, será o fato, apenas o fato, em sua grandiosidade de tragédia grega para evidenciar que, em todas as fases da História, na sucessão das teorias e nos choques dos interesses, há um valor constante, um só, sem o qual os acontecimentos não teriam repercussão, efeitos, reflexos, consequências – o homem.
O Brasil vivia a grande crise. Uma campanha política estava contra o presidente, vários chefes militares reuniram-se para propor a renúncia do presidente, a licença ou o afastamento para uma viagem ao estrangeiro. Os jornais do dia estampavam vastos noticiários, cada qual defendendo sua posição política. O movimento conspiratório cresceu. E no dia seguinte, 24, desfechou-se a trágica notícia da morte de Getúlio. No dia 25, porém, comemorava-se o dia do soldado. Talvez houvesse uma trégua...
Nasci – em um ambiente onde a política do país era comentada em cochicho, nos corredores de casa – num pequeno bairro um pouco afastado do centro da cidade que era para mim feio e amado. Um bairro com mocambos, construções baratas e casarios barrocos, arrastando-se, estendendo-se sem planos. Via tudo de vários ângulos e sentia. Meus olhos não sossegavam, seguia o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. Olhava a rua sentado no batente de casa e via os moleques, os matões de aula e os velhinhos vestidos sempre às centenas os ternos de caridade em farrapos, zanzando numa vadiação sem fim.
Desviava rápido meus olhos para a paisagem ao lado, casas velhas, velhos telhados, verdes de limos, no geral encardidos e pequenas chaminés de manilha que deitava fumaça ridícula de tão insignificante no azul do céu.
Minha mãe era uma boa criatura, senhora de pouco cérebro e muito coração, caseira, bonita e modesta, temente às trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus. Dessas duas criaturas nasceu a minha educação. De perfil lembrava-me minha mãe e do gosto à política, meu pai.
Fui à escola aprender a ler, escrever e contar e, ao mesmo tempo, divertia-me. Nesse tempo os castigos eram tantos, as lições árduas e longas, e a palmatória...ah! aquilo era caso de tremer as pernas de tão pesado e doloroso. O terror dos anos. Nesse período de minha infância conheci Álvaro, menino inventivo e travesso, que gazeava a escola para caçar ninhos de pássaros ou perseguir lagartixas nos velhos muros dos sobrados, ou simplesmente peraltar pelas ruelas tortas.
Nas tardes quentes, ficávamos nos terrenos jogando bolinhas de gude. A garotada na expectativa de vitória, esperava com ansiedade o próximo lance que um dos adversários – um garotinho franzino – caprichava, medindo a distância, calculando a força. A bolinha atravessou, acompanhado pelos olhos de todos, várias outras passando rente, não acertando em nenhuma. Era a vez de Eduardo, o Dudu. Ele limpou as mãos, deu dois pulos e cuspiu três vezes com o seu estilo clássico de jogo, mas mesmo assim não acertou. Chegou a minha vez: atirei a bola que partiu veloz, mas por causa de uma pedra que desviou o curso da bolinha, não consegui acertar. Veio Álvaro fazendo um cálculo meio rápido, atirou a gude entre as demais e pou!. A bolinha acertou nas outras. A meninada explodiu de contentamento. Era assim nossas tardes, ora jogando bolinhas de gude, ora empinando papagaio. Vejo-lhe ainda agora entrar na sala, atrasado....
-- Atrasado, não é verdade Álvaro?
-- Sim, professora, desculpe-me. Creio que não foi por pilhéria, mas porque acordei tarde hoje.
Falava aquilo como se estivesse dialogando com um colega qualquer, o que seria difícil para mim, se estivesse em seu lugar.
-- Já que acordou tarde – prosseguiu a professora -, fará umas liçõezinhas de apenas umas 100 linhas para lembrar-se de que você deve acordar no horário certo.
-- Certo, professora. Certíssima... – e em voz baixa – será?
Alguns alunos tremiam, outros rosnavam, só Álvaro deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. Isso foi no primário. Lembro-me de quando me tornei seu amigo. No primeiro dia de aula, muitos garotos conversando temas diversos como se já fossem antigos colegas de sala. Eu, na terceira fileira, silencioso, ficava a olhar para frente. Todos sorriam, conversavam ou zombavam de tal garoto, mas logo vi que não era o único que estava silencioso. Outro menino, o escurinho Álvaro, na primeira fileira, estava de cabeça baixa. Eu o observava. De repente, ele levantou a cabeça e pregou fixos em mim os olhos negros e perturbado. Uma ou duas vezes os olhos dele se cruzaram com os meus. Após o término do primeiro dia de aula, todos partiram juntos. Eu atrás, já estava atravessando o pátio do recreio e Álvaro marchava ao meu lado, com a sacola atirada displicentemente às costas. No dia seguinte, na terça-feira, ele me esperou depois das aulas e, sem dizer palavras, apenas com um sorriso tímido, marcou o passo com o meu, enquanto descíamos a rua.
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