-- Quando o Verão chegar, pretendo ir pescar em Arembepe... se você quiser ir...
Fiquei contente em ser o companheiro preferido por Álvaro para aquele passeio.
-- Olhe, Álvaro, olhe! – bradei num grito agudo aproximando-me dele e apontando para a montanha. Era uma procissão do santo padroeiro da cidade. Uma multidão acompanhava o cortejo à igreja. Corremos para ver tudo de perto.
Os velhos marinheiros estavam felizes, pois todos os pedidos seriam atendidos naquele dia, 31 de dezembro, pelo seu protetor, Senhor Bom Jesus dos Navegantes. Todos os homens que trabalham no caís da Bahia e que vivem do mar participam dos festejos e sabiam que cumprindo a sua obrigação para com o santo, teriam, no ano seguinte, sorte para um ano melhor. O ponto mais alto desse espetáculo é a procissão de barcos e saveiros, que todo ano sai da Boa Viagem e vai até a Barra, voltando no dia primeiro do ano.
Até hoje, a galeota faz o mesmo percurso dos primeiros tempos. Sai no dia 31 da Igreja da Boa Viagem a procissão do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, conduzindo a imagem até o seu embarque na galeota, a qual ruma para o quarto armazém das docas, no Terminal da França, encontrando-se com a imagem de Nossa Senhora da Conceição da Praia e, em seguida, partem com destino à Basília da Conceição, de onde sai no dia primeiro, indo até a Barra.
Na volta, vai até Monte Serrat e retorna para a Igreja de Boa Viagem, através de um canal natural entre dois recifes. No quarto armazém, os homens que trabalham no porto de Salvador, prestam as suas homenagens e, durante o percurso da Barra, flores são atiradas no mar, em homenagem aos que morreram. A galeota é puxada por um outro barco onde um grupo “pegadores do santo” conduz o andor. Neste grupo, homens, que há mais de 30 anos vêm repetindo a cerimônia, vestem-se todo de branco. A religiosidade cristã e a crendice popular tomam conta do local quando do regresso da Boa Viagem. Enquanto muitos tocam atabaques, os fiéis fazem as suas orações.
Depois dessa longa caminhada atrás da procissão, voltamos para casa exaustos. Álvaro, mais velho do que eu, dois anos, era perito em quase todos os jogos da escola, mas raramente os praticava, porque tinha outros gostos e distrações muito diversos dos garotos em geral. Na estante do seu quarto – que fiquei conhecendo numa das tardes que estudamos Matemática para a prova seguinte – tão confortável, viam-se livros de história geral, cheios de estampas coloridas de grandes vultos com os nomes impressos por baixo e análises sobre suas proezas. Numa das paredes, a fotografia do dono do quarto, de calção esportivo, segurando um enorme peixe. O pai dele era emérito pescador de caniço e, frequentemente o levava a pescar. Além disso, era advogado.
Veio janeiro, com a promessa de férias de verão e quentes ventanias. Saí descalço, em companhia de Álvaro, correndo atrás das carroças de água pelas estradas quentes e poeirentas do bairro. Subi com ele até o Queimadinho afim de apanharmos goiaba. Mamãe as transformavam em um delicioso doce. Nesse mesmo dia, já à tardinha, fomos pescar. Endireitamos o bote e o empurramos para a água do mar. O sol se escondeu lá no horizonte e as cores do céu mudaram de lilás para púrpura escuro, tornando indistintos nossos rostos.
O barco deslizava suavemente. Guardei os remos e ficamos em silêncio. Lançamos o anzol e esperamos, esperamos até de que repente, a ponto do caniço se curvou como um arco tenso, e sento a vibração nas mãos, ao cabo da vara. O peixe dava pulos loucos, enquanto o carretel corria. A nossa pescaria foi boa. A lua já estava no alto, serena, iluminando nossas faces. “Isso sim é que é vida”, dizia Álvaro ofegante, pelo simples viver livre.
Ele adorava estar assim, em liberdade com a natureza pura. Liberdade!. As árvores ficam livres quando o vento as arranca pelas raízes; os rios ficam livres quando levados pela correnteza, despencam do alto em cachoeira; os navios ficam livres quando arrebentam suas amarras; os homens ficam livres quando são expulsos de seus lares. Liberdade soa cada vez mais como sofrimento. O dia chegara ao fim, fizemos de tudo e não nos lembrávamos de nada, queríamos viver.
Mas tudo acabou quando veio a notícia de que Álvaro deveria abandonar-me. Seu pai resolveu comprar uma casa em Minas Gerais e ficar morando por lá. Álvaro e eu nos despedimos na estação rodoviária, com os olhos suspeitosamente brilhantes, velando o novo pacto de uma eterna amizade com um aperto de mão especial que nós adotamos, firme como aço. Levei minha coleção de História dos Grandes Vultos que recebera no prêmio anual da escola e ele também, como se quisesse deixar uma lembrança, deu-me uma bela máquina fotográfica, com fita e tudo. E eu não esperei um segundo, antes de parti, bati algumas fotos suas.
Tinha treze anos de idade quando ganhei a máquina fotográfica e daí em diante ficava todos os dias sentado à beira do batente de casa e não longe de mim, todo um mundo desfilava, saudava-se, cruzava-se, mostrava-se. Minha máquina tinha um clic terrivelmente barulhento.
Aprendi a fazer o foco entre cinco e sete metros de distância. Quando as pessoas estavam a três metros, clic. As reações eram diversas, indiferença ou um sorriso. Quando o senhor que acompanhava a moça mordia os lábios sob o bigode, dizia para mim mesmo: “O problema é dele. Eu tenho a foto”. Era assim todos ou quase todos os dias, e eu voltava para a escola carregado de emoções.
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