O Carnaval se aproximava e eu, cada vez mais preocupado. Álvaro não estava entre nós. Viajou para a Europa, disputar as olimpíadas. Os jogos estavam atrasados, por causa dos ataques terroristas e Ana, por sua vez, dava concertos musicais nos Estados Unidos. Recebia cartas dos dois e respondia, mas, no Carnaval, não teria a companhia desses amigos. Cláudio resolveu pular no nosso bloco, o que muito nos honrou.
O Carnaval começou desde que os blocos e escolas de samba ensaiaram nos mais diversos bairros da cidade, tomando um impulso maior com a Segunda Feira Gorda da Ribeira, considerado como o grito de nossa festa momesca. Os blocos e cordões, depois dos já famosos trios elétricos, foram os responsáveis pela grande animação do carnaval baiano, reunindo grupos enormes de foliões, arrastando multidões, fazendo todo mundo pular. “O teu cabelo não nega, mulata/por que és mulata na cor/mas como a cor não pega, mulata/mulata eu quero o teu amor”.
Praticamente em todo o primeiro dia havia tanta gente na rua que não foi possível a passagem de nenhum veículo na Praça da Sé. Do alto da avenida vinha nosso bloco Os Filhos de Iemanjá com Dina bem à frente, segurando a bandeira e mil requebros que deixavam a turma louca. Mais atrás estavam Cláudio, eu e as garotas brincando e dançando ao ritmo da folia. “Se você fosse sincera/ô ô ô ô Aurora/veja só que bom que era/ô ô ô ô Aurora”. O pessoal que estava instalado ao lado da avenida se espantava com o tem pó que os blocos levavam passando: “É gente que não acaba mais”, gritou um garoto. Como é de costume, houve confusões na passagem do cordão O Bafo do Boi, quando alguém resolveu mexer com a mulata do crioulo e este resolveu ir à desforra. No mais, os três dias de folia ocorreram normalmente bem.
Chegou a quarta-feira de cinzas, não tão triste assim, o céu matinal estava de uma cor azul belíssimo, e as poucas brisas que ainda agitavam as árvores pendentes tinham um sopro leve de brisa fresca. Mais tarde o calor reinou no dia.
Estava tomando banho com as portas abertas quando Cláudio, que estava passando uma semana na minha casa – não o pensionato, mas uma casa em um lugar tranquilo – acordou e aproximando-se do banheiro, virou as costas rápido como se receasse por algo e comentou:
-- Nesse mundo competitivo, não é fácil achar um verdadeiro amigo. Há um ditado que diz que “o único modo de se ter um amigo é ser um”. As pessoas, às vezes, sentem-se solitárias e acham que são deixados por fora das coisas pelos outros jovens, os quais talvez admirem ou talvez tenham tido amigos, mas os perderam. Talvez se sintam magoados por causa disso, mas a verdade é que a amizade é uma rua de duas mãos.
E terminando o banho, saí do banheiro assim como estava, nu, perguntando:
-- Sou um verdadeiro amigo para você?
-- Mais do que isso – respondeu-me -, você é meu irmão. Agora vou tomar um banho, o calor está demais.
O que era verdade, pois mesmo depois de ter tomado banho, sentia calor. Ele entrou e fechou a porta, à chave. Isso causou-me estranheza. Talvez o amigo fosse tímido, mas de chave, não era tão preciso assim fechar...Notei como ficou meio corado ao me ver nu, afinal, somos do mesmo sexo e não há nenhuma vergonha, mas...o melhor é deixar esses pensamentos de lado, pensei.
Meu novo amigo era simpático, e não conseguia deixar de fitá-lo constantemente, mas, assim que ele voltava a vista para mim, eu baixava os olhos receosos. Ele era diverso de todos os amigos que tive, possuía uma marca pessoal que fascinava, mas fazia tudo para aquilo passasse despercebido. No princípio, nossa amizade foi superficial, mesmo frequentando ele constantemente a minha casa. Muitas vezes a presença de certas pessoas causa-nos animação e outras, inconscientemente, nos sentimos desconfortáveis. O novo colega me proporcionava alegria, tinha um temperamento liberal, algumas vezes alegre e extrovertido, outras vezes, triste e inibido. Era, na maioria das vezes, um rapaz calado.
A linha firme da boca com o lábio superior curto e altivo, mudava de expressão quando estava zangado. O queixo pequeno mas resoluto, nos olhos claros e profundos, fiquei a olhar o rosto calmo, atento, inteligente, o que me fez lembrar de Ana, rosto europeu legítimo que parecia dizer silenciosamente à vida – nunca hei de ceder.
Muitas vezes Cláudio, queimadão de praia ficava com aquele suave e delicado olhar meio vago, ligeiramente torturado, despertando incontida carga de apelo maternal e saia apressado – eram seus momentos de mau humor. Certa vez, deparei com uma raridade de menina, uns 14 anos na batata, parada no ponto de ônibus, um rostinho inspirando inocência, moreninha como ele dizia gostar, pele sem pintura, coxas modeladas, peitinhos pequenos, tinha quase sua altura. Excitei-o, empurrando para perto da garota que muito o olhava. Ficou nervoso, não sabia o que falar, pensou várias vezes mas, de sua cabeçada saia, nem tampouco da boca, ficou mudo, só conseguiu movimentar as mãos e quando criou coragem, um ônibus foi se aproximando e a garotinha pegou o veículo. Ele saiu um pouco furioso. Perdeu aquela oportunidade e, muitas que ele via por aí a fora, no momento exato, perdia a coragem, ficava tremulo e mudo.
Muitas namoradas que conseguia foram elas que o paqueravam. Elas, quando o encontram pela primeira vez, procuram se aproximar o máximo dele, mandavam recado, sorriam, davam um psiu e ele, acanhadão, vai se aproximando e diz quase uma bobagem, então, tudo se torna fácil, mas não dura muito e daqui a pouco tudo estará terminando, pois o rapaz nunca é pontual aos encontros e, às vezes enjoa das garotinhas burras que nada sabem lhe dizer para o seu desespero, a não ser seu corpo, e isso, para ele, é pouco. Ele quer mais, sempre querendo mais.
Um dia não tardou a se envolver, ou melhor, a ser envolvido em um caso de amor. Cristina, uma bela viúva apaixonou-se terrivelmente pelos seus olhos, sua boca, seu corpo e ficou a esperar nos lugares onde passava. E, de tanta insistência, Cláudio levou-a a um agradável passeio mas Cristina resolveu fazer um pedido, choramingando amorosamente, desejava dar uma olhada no parque que existia nos arredores da cidade. Sua intenção era levá-lo aos lugares mais silenciosos e mais distantes. Não havia ninguém no parque. Descansaram à sombra das árvores e trocaram palavras até que, em dado momento, ela lhe mostrou os lábios carnudos, ardentes de desejos, sedutores e, quando ele se afastava, ela puxou-o, beijando-o violentamente, mordendo seu rosto, seus olhos, sua boca, querendo mais com fome de amor.
Ele, de uma estranha timidez, simulou uma dor de cabeça, retirando-se bruscamente daquele local e, durante muito tempo não se viram. Agora, sozinho no meu quarto, fico a pensar nas mais estranhas reflexões sobre o amigo..seu comportamento diferente dos demais rapazes, sua beleza de atrair por demais as garotas e...será realmente timidez? Só o tempo dirá, esqueço tudo e vou dormir.
Os animais são simplesmente animais, dizia-me, os homens fazem visitas, mantém conversações, trabalham, frequentam boates, clubes, tudo forçosamente e sem na realidade quere-lo fazer, vivem nesta coisa chamada sociedade... tão falsa como um apelo comercial aos dias das mães ou mesmo no natal. Assim, fui apreciando o seu modo de ser e me interessei por ele, desejando saber o que se passava no seu interior. Parecia que alguma coisa lhe agradava nas minhas confissões e, vez por outra, conversa sobre meus problemas. Os meus pais distantes, Ana, minha amada que não me escreveu mais, Álvaro sempre escrevendo e demorando de chegar e o pior, uma notícia que seus pais enviaram: “Álvaro contraíra o câncer não se sabe como, e restavam-lhe poucos dias de vida”. Seus pais pediram por tudo que ele passasse alguns dias em casa, os últimos talvez, mas ele sempre teimoso, não voltou. O pedido de Dina fez até com que ele marcasse uma data quando voltaria, em outubro....
Lembro-me do dia de sua vitória nas corridas. Há uma taça com vinho sobre o balcão. Ele bebia. Deixaram-0no beber o seu costumeiro vinho que gostava de tomar nas festas. Não lhe dirão jamais que está com câncer. Mas, por que logo ele. Por que? Estava precisando desabafar e Cláudio mais ainda. Quando reprovava alguma coisa, dizendo-lhe ser infantil demais, apesar do seu alto cargo profissional de modelo e conhecido em diversos países – e isso achava a coisa mais genial nele: a simplicidade e sua infantilidade – não sabendo a pureza que levava n´alma, percebia desde logo, com sobressalto a vergonha que havia desferido um golpe, ferindo o seu coração. Esta observação ele próprio o fizera a si mesmo. Certa vez, com ironias, respondendo-lhe outra coisa, após uma longa e penosa pausa, percebi em seu tom de voz a dor da ferida. Tive que conter as lágrimas. Quis falar-lhe cordialmente, pedir perdão, palavras cheias de emoção acudiram-me ao pensamento, mas foi impossível pronunciá-lo.
Precisava de um amigo, dizia-me. Não precisava ser homem, bastava ser humano e ter sentimento, coração. Precisava saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Deve ter amor, um grande amor a alguém, ou então sentir falta de não ter este amor. Devendo amar o próximo e respeitar a dor que todos os passantes levam consigo. Devendo, também – acrescentava -, ter um ideal e medo de perde-lo, e, o caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. E que o principal objetivo deve ser o de ser amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Precisava de um amigo para se parar de chorar. Para não viver debruçado no passado em busca de memórias queridas. Que nos bata no ombro, sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo. E isto eu encontrei.
-- Posso saber quem foi?, perguntei.
-- Claro! Está falando comigo.
-- Ora, deixa disso, rapaz....
Certo dia, encontrei em um dos bolsos de sua roupa, uma caderneta na qual estava escrito: “Logo que nasci, meu pai meio decepcionado, pois queria que nascesse um menino, batizou-me com um nome masculino e tudo fez para que nascesse homem. Quando cresci, com tal idéia na cabeça, fugi apavorada sem rumo definitivo, até conseguir um ótimo emprego e que estabeleceu um pouco de equilíbrio na minha vida financeira. Já tive idade em que pensei entender o homem. Naquela época, nada sabia...pensava que os outros eram fáceis de entender. O tempo me forjou o diálogo aprendizado da incompreensão. Aprendi que eu era mulher e ele, homem. Brinco de boneca, ele de carrinho. Ele urina contra muros e eu me agacho entre plantas. Me escondia, ele se exibia, me preservava e ele se oferecia, me defendia e ele agredia. Aprendi que eles eram mais fortes do que eu, mais inteligentes e que deviam ser servidos e que amavam de forma diferente. Acreditei e fui servil e recebi como dádiva o pouco que me dava. Mas chegou o dia em que descobri a verdade e a culpa era minha de não ter entendido ou de ter acreditado...”.
“Vi o homem deformar-se dentro do meu olho, e aquilo que acreditava ser dele hoje já não lhe pertence amanhã, e aquilo que pensava ter vislumbrado hoje será mais um caminho errado que seguirei amanhã. Hoje sou uma e amanhã serei outra, não queria ser para ele, a mulher, essa desconhecida, preferi ser o homem. Minha natureza sexual é o que menos importa. Vivo personagens, segmentos do meu eu. Nunca vivi completamente aquilo que penso, só as idéias que vivemos é que tem valor. Percebi que o “mundo permitiu ( ) apenas a metade do mundo, e tratei de ocultar a outra metade, como fazem os religiosos e outros. Jamais consegui ser o que sou biologicamente, a partir do momento que comecei a pensar naquilo que faço. Tentei viver aquilo que brotava espontaneamente em mim, mas isso era difícil por causa da frustração, lembranças passadas...meus pais. Procurei então a mim mesmo afirmar em mim e seguir sempre adiante o meu próprio caminho, sem me preocupar com o fim a que possa conduzir-me. Talvez assim poderia ter a força de chegar em mim mesmo e encontrar algo de que verdadeiramente necessito para completar-me”.
Toda aquela narrativa literária era para mim confusa e inexplicável. Quando Cláudio voltou, perguntei se era aquilo o seu diário. Ele, furioso, como nunca vira antes, mortalmente pálido e com, voz trêmula disse-me que “era de uma moça frustrada...”. O som da sua voz era incerto, e as lágrimas estavam prestes a lhe arrebentar dos olhos, “que entrou em minha vida – continuou ele – e deixou apenas isso...mas você não entenderá, talvez algum dia....”. Mesmo assim a resposta não me convenceu, mas, devido ao seu sentimento, não tentei fazer novas perguntas a esse respeito, preferi calar-me e concluir com meus próprios pensamentos pois cada ser humano é uma ilha, carregando mistérios e esperanças. Muitas vezes essa ilha é visitada por outras pessoas que, não entendendo sua natureza, querem modificá-la. Mas se a ilha tem base fortificada, resiste a essas mudanças bruscas. Seria tão bom se o ser humano em, vez de ilha, fosse continente...Sonhar é bom! O tempo todo seria primavera e o sol brilharia todos os dias, iluminando o verde nas folhas, o azul do mar e o moreno na pele das mulheres. Sim, sonhar na beleza da vida, apagando as misérias do mundo, reinando a harmonia em todas as coisas. E mais ainda, ver a felicidade nos rostos de todos. A vitória desse sonho seria uma vitória para a humanidade. Mas tudo nos sonhos passa a se tornar passado.
-------------------------------------
Estamos publicando um folhetim com 16 capítulos dessa história escrita em 1975------------------------------------------------
Logo depois dos festejos juninos até final de agosto o blog vai ser invadido pelos quadrinhos. Aguardem!!!
Um comentário:
Olá caro Gutemberg.
Procurando na internet texto sobre o grande Zé Trindade. Encontrei um texto seu de 2006 falando sobre ele.
Meu nome é Jessé Patrício sou estudante de cinema e moro em Maragojipe.
Será que você poderia me ajudar num mistério que até hoje a cidade não sabe responder.
Se o Zé Trindade era de Salvador, por que nos filmes dele ele dizia que era de Maragojipe.
Estou com um projeto de documentário sobre a vida dele e se o senhor puder responder essa pergunta seria ótimo.
Meu email é: js_patricio@hotmail.com
Abraços!
Postar um comentário