06 março 2021

Memória e esquecimento na obra Rocha Navegável


Uma narrativa construída a partir de fatos históricos. Os eventos são ocorridos na capital baiana do século XIX. A dinâmica vai englobar grandes personalidades ancestrais locais, a arquitetura histórica da Bahia e um personagem nipônico singular. Em uma São Salvador com ainda poucas décadas de Independência (de Portugal) e já uma intensa riqueza cultural, um fantasma samurai vagará na busca por redenção. Rocha Navegável, de Fábio Costa e Igor Souza, é o mais novo título de histórias em quadrinhos da RV Cultura e Arte.

 


“O povo preto é esquecido nesta cidade de pretos, tenente”

 

“Quase todos os monumentos são homenagens a brancos”

 

Mistura fatos ocorridos em Salvador com uma viagem histórica e espiritual, onde os malês são peças fundamentais. Na história, o espírito dos revoltosos cobra a existência de um monumento à eles no Campo da Pólvora, local que no passado abrigou uma vala comum, onde os escravizados mortos eram atirados. O local foi cemitério para muitos dos malês mortos na revolta de 1835.

 

“Ou tem cara de branco, como as estátuas do Campo Grande...aquelas meninas espalhadas pela praça”

 


O leitor é convidado a desvendar a história de um fantasma samurai que há 150 anos vaga pelo centro de Salvador em uma incessante busca por redenção. Recheada de fatos e referências históricas, a HQ é inspirada no intrigante relato de que, em 1870, a bordo de um navio inglês atracado na Baía de Todos os Santos, o jovem tenente japonês Maeda Jurozaemon teria cometido o ritual do seppuku, o suicídio samurai.

 

Supostamente enterrado no Cemitério dos Ingleses, seu corpo e sua lápide teriam desaparecido alguns anos depois, deixando a história envolta em um grande mistério. O que teria acontecido ao tenente?

 

A trama parte de cruzamentos entre a tradição oriental samurai e a herança imaterial africana para construir uma jornada sobre autoconhecimento e aprendizado, ao mesmo tempo em que toca em temas contemporâneos como as discussões antirracistas no âmbito do patrimônio cultural, colocando em xeque as representações e os significados dos monumentos na cidade. Salvador não é apenas cenário, mas também elemento condicionante para o suceder da história.

 

“Os rios Paraguaçu e São Francisco com cara de Rei Netuno...”

 

“Até Catharina Paraguaçu é uma deusa romana. E o caboclo...índio de filme gringo...”

 


Memória e esquecimento é um dos temas centrais da obra. O desejo dos espíritos de Rocha Navegável é luta travada também na vida real em prol dos malês. O Conselho Nacional de Entidades Negras (CONEM) cobra há anos a existência de um monumento no Campo da Pólvora que homenageie os revoltosos. Uma das propostas já levadas ao Governo do Estado é para que o Campo da Pólvora se torne um sítio histórico sobre a revolta, com a instalação de um monumento em homenagem aos líderes do levante.

 

Na narrativa o cruzamento entre imigrantes e escravizados. Tenente japonês cometeu haraquiri e enterrado em solo baiano. Um corpo desapareceu. Em torno desse fato entidades do centro da cidade, estatuas e orixás, auxiliam em sua busca. O fato realmente torna-se atual no descaso com a pandemia – retorno das valas comuns dos corpos de pessoas vitimadas pela Covid-19.

 

Com desenhos em aquarelas que lembram um pouco a obra de Bill Sienkiewicz, mas é original e belíssimo, Fabio Costa e Igor Souza passeiam pela Cidade de Salvador entre vultos e cinzas, vermelho e azulado, entre poesia...

 

“espremer a palavra até extrair o silencio”

 

“chuva forte a noite parece fora do ar, a madrugada respira com auxílio de aparelho”

 

“nas encruzilhadas esfinges aguardam abrir o sinal”

 

“Tenho mil bocas e nelas as vezes se trancam, se perdem, se trincam, se despem em bocejos ocos que o corpo ensopado esguicha em guinchos mortos....Tenho mil gotas de sangue a circundar-me as retinas umedecidas a quem a beleza fere com suas fartas quilhas....”

 

A RV Cultura e Arte surgiu em Salvador (2008), materializando um projeto dos sócios Larissa Martina e Ilan Iglesias. Com o foco lançado sobre a Artes Visuais, sua ação está organizada em três frentes: galeria de arte, selo editorial e livraria de quadrinhos. Nos quadrinhos, a primeira obra lançada foi São Jorge da Mata Escura, de Andre Leal e Marcello Fontana.  Rocha Navegável é o 5º título de quadrinhos lançado, ratifica o perfil da RV de valorizar os aspectos sociais e valores culturais que moldaram a Bahia.

 

A obra (formato 17 x 25 cm, 160 páginas, R$ 34,90) tem apoio financeiro do Governo do Estado, por meio do Fundo de Cultura, Secretaria da Fazenda, Fundação Cultural do Estado da Bahia e Secretaria de Cultura da Bahia. Vale a pena conferir!

Um comentário:

Fábio Costa disse...

Muito obrigado por esta resenha generosa, Gutemberg! Ficamos honrados com suas palavras. Vida longa ao quadrinho baiano e brasileiro! Abraço!