04 maio 2010

Memórias, trajetória (2)

A antropologia, ao descentrar o eixo dos valores etnocêntricos, propicia a quebra de hierarquia dos discursos e aguça o interesse pela valorização de textos considerados marginais pela cultura oficial. Enquanto na Bahia esses estudos eram desprezados, em outros estados como Rio, São Paulo e até Rio Grande do Norte, proliferaram nessa época, pesquisas voltadas pra a releitura de manifestações populares brasileiras, como os ritos do carnaval, do candomblé, do cotidiano, bem como a literatura de cordel, histórias em quadrinhos, a música popular, o artesanato. A revitalização dos discursos das minorias, como os da mulher, do índio, do negro, data do final da década de 70, quando se começa a lutar por seu espaço no debate acadêmico.


Quando sofri represália no Colégio Duque de Caxias (Liberdade) por ter lido uma obra literária em quadrinhos e recebido a nota máxima, quando a pedagoga soube que a leitura era em quadrinhos resolveu me reprovar, procurei pesquisar sobre esse preconceito contra os quadrinhos. Não encontrei nada em nossas bibliotecas. Muitas obras chegavam (e ainda chegam) com muito atraso em Salvador. Foi a partir dessa ausência de estudos que resolvi fundar uma associação que estudasse os quadrinhos.


Ao fundar o clube de quadrinhos (Clube da Editora Juvenil, e mais tare, Centro de Pesquisa em Comunicação de Massa) convidei o jornalista e escritor Adroaldo Ribeiro Costa para ser o patrono. Em resposta ele me convidou para escrever artigos obre quadrinhos na sua Página Infantil publicada todos os sábados no jornal A Tarde.

ROCHA


Desde bebê, minha mãe me tornou a rocha sobre a qual construir minha vida de jovem adulto. Foi ela que incentivou os estudos, pois meu pai era puro trabalho. Sua padaria era sua vida e, com o tempo, tornou-se o pão mais popular do bairro. Pela manhã, bem cedinho havia fila para comprar seu produto. Minha mãe, muitas vezes, escondida, pegava vários pães para distribuir aos necessitados. Diante do excesso de trabalho para manter na família numerosa meu pai era uma pessoa fria, distante e exigente. Um homem rude, afinal. Era a imagem que fazia dele, mas um trabalhador árduo, sistemático e emotivo, muito.


Assim, para não sair igual a ele, brutalizado pelo trabalho, procurei estudar o máximo possível (mesmo contra sua opinião que achava que quem estudava muito ficava louco ou mesmo suas indagações de que a História era um monte de bobagens, pois quem escrevia era o vitorioso, quem contaria a história do perdedor? onde está a verdade nisso tudo?, questionava) para investir em um único aspecto da vida – a profissão.


Quando esse aspecto ficava repentinamente ameaçado ou perdido, a dor vindo da infância ressurgia. Brinquedos? nem pensar..., não havia economia para esse objeto do desejo e luxo numa infância pobre. Enquanto sonhava em ter um trenzinho (do tipo Autorama) ou o famoso Forte Apache, fazia meus próprios brinquedos com latas de sardinha (e haja latinhas para o trenzinho) ou mesmo uma velha tábua com rodinhas de rolimã para fazer o patinete. Na minha infância brincava ainda de bolinhas de gude, furapé, guerreou ou empinar arraia (pipa).


GIBIS

Como não tinha brinquedos de loja, o jeito era improvisar e a diversão era com todos os garotos de rua, compartilhando tudo, lá no velho Corta Braço, hoje Pero Vaz, o quintal do bairro da Liberdade, tão pobre e esquecido pelas autoridades. Na adolescência conseguir juntar alguns trocados para a sessão da tarde nos cinemas São Jorge ou Liberdade, e, de vez em quando no cine Pax, na Baixa dos Sapateiros. Antes das sessões dos seriados havia troca de gibis, e não faltava revista do Flecha Ligeira, Cavaleiro Negro, Fantasma, Roy Rogers, Tarzan, Popeye, Brucutu entre outros. Era uma felicidade total a troca de gibis. Os olhos brilhavam com aquelas aventuras dos heróis da nossa infância, do nosso imaginário. E como sonhava com aqueles gibis. Muitas vezes esquecia de toda aquela pobreza em volta para sonhar com esses mitos, esses deuses de nossa imaginação.

Foram essas pequenas ações que fazia esquecer as feridas, a da infância, suportável mesmo que seja permanentemente sentida. Não deixei que minha vida escorregasse por entre os dedos por ter nascido em uma família pobre, analfabeta e quase desajustada. Isso me fortaleceu para não repetir os erros dos meus pais. A “música da minha vida” passou a ser os estudos, seguida do trabalho. Ai é que foquei no jornalismo, na época, aventura, mas acima de tudo, participar da vida comunitária. Dar sua parcela de contribuição na sociedade. E o jornalismo era o mais próximo. Meus colegas preferiram “profissões mais resistíveis ou respeitadas” como médico, engenheiro, arquiteto, odontólogo. Eu não, tinha decidido aquilo que mais queria, tanto é que no ginásio já produzia o jornal do colégio do IAPI, o Bicão (gíria da época) onde discutia os rumos da educação, fazia parte do grêmio e discutia com os professores os assuntos da sala de aula.


E era um custo ter um livro nas mãos, porque faltava dinheiro. Até hoje lembro a primeira vez que saí do distante bairro do Pero Vaz para conhecer no bairro de Nazaré a Biblioteca Infantil Monteiro Lobato. Que felicidade ao ver aquele casarão belíssimo cheio de livros. Fiquei muito emocionado. Aquilo parecia até que tinha ido a Disneylandia, o paraíso das crianças endinheirada da época. Sim, a Biblioteca Infantil Monteiro Lobato foi minha Disneylandia. Ficava horas passeando com olhos aqueles livros encantadores. Sonhava em morar perto dali, era um desejo fortíssimo. E não é que, décadas depois, já esquecendo do fato, fui morar e ainda moro ali pertinho. Amanhã falaremos dessa biblioteca tão importante na vida de crianças e jovens de Salvador.

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