03 maio 2010

Memórias, trajetória (1)

Para passar a limpo o trajeto de uma vida é preciso retraçar a linha do presente, pela construção de um espaço de escrita. Corre-se o risco de apresentar um relato no qual o sujeito autor se manifesta de forma neutra, na ilusão de apagar as marcas do vivido ou abandonar-se à declaração da interioridade, tecendo narcisamente o enredo de experiências. É difícil escolher o tom e a justa medida quando o indivíduo se propõe falar de si, pois exige-se o rigor da cientificidade. É preciso esforço para inscrever-se no território neutro da linguagem, relutando entre a indiscrição e a timidez, sobressaindo ou apagando-se nas entrelinhas de tantos nomes próprios e assinaturas.


Há uma variedade de intérpretes da história do sujeito crítico, por isso movimenta em especial e pluralizo em vozes e autores diferentes. E nesse circuito intersubjetivo de transmissão de saberes, ao falar de si, é falado pelo outro, fazendo ressoar as vozes de uma geração que compartilhou das mesmas aventuras. Cuidar de si, pelo exercício da escrita, processar o esvaziamento da interioridade, ao tornar pública uma experiência socialmente legível. A escrita do eu refere-se ao nós do grupo, ao plural de uma época e a um determinado lugar histórico onde são produzidos os saberes e através do qual circulam as ideias. Percebem-se, ao longo dos anos, as variações e derivas do olhar interpretativo, algumas vezes oblíquo e distante do objeto, outras próximo e entregue parcialmente à sedução do corpus escolhido. Acompanha-se também o movimento de entrada e saída do gesto enunciativo – recuos, avanços e saltos. “Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos”, escreveu Graciliano Ramos.

O recorte enunciativo que perpassa este texto e o movimento das entradas e saídas do sujeito encontram no ensaio seu jeito próprio, pois a forma do ensaio traz à superfície de escrita a encenação de histórias e a dramatização de enunciados, procedimento que revitaliza a dimensão experimental e provisória do relato de experiência, por se distinguir do caráter demonstrativo e fechado dos tratados.

Há, na verdade, lapsos da memória. Mas como desabafou Mário de Andrade a Carlos Drummond, em carta de 1924, “o importante não é ficar, é viver”, consciente do agora e do transitório. O que permanece nesse texto é o convite à aventura do desvelamento e do apagar das letras, motivado pelo gesto enunciativo que adia ou apressa sua leitura. A escrita é o suplemento do vivido, simulacro produzido pelo jogo contínuo de presença e ausência. Só para relembrar para alguns que implicam quando critico o atraso cultural em nossa terra. Atualmente foi difícil encontrar o novo disco de Gilberto Gil nas lojas (e olha que ele é superconhecido, e baiano, foi até ministro!), assim como o livro de Dona Canô sobre comida regional só chegou a Salvador quatro meses depois. E os livros lançados pela Edufba demoram meses para chegar às livrarias locais. São apenas alguns exemplos de milhares....


QUADRINHOS


Havia uma pressão muito grande de educadores, padres, políticos e da imprensa contra os quadrinhos. A única manifestação pública de alguma autoridade (e a favor) a respeito de histórias em quadrinhos no Brasil viera do jurista e político baiano Rui Barbosa, como conta o jornalista e pesquisador Gonçalo Júnior no seu livro “A Guerra dos Gibis” (Cia das Letras, 2004). Rui não se envergonhava de surpreender seus interlocutores com a famosa frase “li em O Tico Tico”, sempre que queria justificar de onde tirava suas informações e conclusões.


Outra figura importante em defesa dos quadrinhos foi o escritor baiano Jorge Amado que teve três de seus romances que retratavam a Bahia nos anos 20 e30 incluídos na coleção Edição Maravilhosa: Terras do sem fim, São Jorge dos Ilhéus e Mar Morto.


A terceira personalidade a defender os gibis na Bahia foi a bibliotecária Denise Tavares. Ela travou uma batalha terrível pois nos anos 50 havia uma paranoia em comparar quadrinhos com delinquência juvenil. Época de Guerra Fria, quando tudo se confundia com subversão. Denise enfrentava a pressão informando que os quadrinhos ajudava os jovens a criar hábito de leitor.


Para acabar com esse preconceito contra os quadrinhos resolvi reunir um grupo de amigos do bairro que gostavam do prazer da leitura de gibis e resolvemos criar uma associação de leitura e análise. Os efeitos não se restringiram à reunião do grupo, mas se fizeram sentir nas atividades didáticas, através de cursos, palestras, seminários, debates. Cumpri, na verdade, o papel de divulgador de um pensamento teórico que era novidade para a cidade. Os cursos e palestras ministrados por mim se concentraram, principalmente, na discussão de análise dos personagens e sua postura na sociedade, utilizando o método histórico, cronológico do surgimento desses heróis e sua relação com os fatos da época. Do ponto de vista metodológico, estabelecendo-se, pela mediação dos objetos, a relação entre as personagens.

Além dos quadrinhos gostávamos de estudar a literatura popular, pois desenvolvia pesquisa sobre a literatura de cordel. Esse trabalho já foi publicado na imprensa baiana. A análise dos folhetos se processa sobre a óptica antropológica. A relação intertextual era feita de forma a promover o conhecimento multifacetado da literatura de cordel e a apropriação oral de fatos e lendas do populário. Mas meu interesse pela cultura popular e a literatura oral não se limitava ao cordel, estendia-se sobre música popular, romance policial, poemas concreto e processo, grafiti, quadrinhos e fotonovela, arte pop, cinema (teve um episódio interessante com o cineasta Nélson Pereira dos Santos que na época estava em Salvador e eu procurei para entrevistá-lo para o nanico A Coisa, suplemento da Tribuna da Bahia. Nélson ficou interessado em dar entrevista sobre essa relação cinema versus quadrinhos, mas em troca teria que participar, como figurante, no seu filme Tenda dos Milagres. E lá estou participando no filme de Nélson...) e poesia. Houve um período que o quadrinho foi o mais focado em meus estudos, mas as ideias de cultura de massa estavam em constante circulação. Já nos anos 80, fim da Guerra Fria e a queda do muro de Berlim coincidiu com a abertura democrática no Brasil, a década do quadrinho de autor (Watchmen, Cavaleiro das Trevas, Crise nas Infinitas Terras, Asilo Arkhan, A Piada Mortal e tantas outras) foi também o período em que a França perde três de seus mais eminentes intelectuais: Sartre, Barthes e Lacan.

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Quem desejar adquirir o livro Bahia um Estado D´Alma, sobre a cultura do nosso estado, a obra encontra-se à venda nas livrarias LDM (Piedade), Galeria do Livro (Boulevard 161 no Itaigara e no Espaço Cultural Itau Cinema Glauber Rocha na Praça Castro Alves) e na Pérola Negra (ao lado da Escola de Teatro da UFBA, Canela) E quem desejar ler o livro Feras do Humor Baiano, a obra encontra-se à venda no RV Cultura e Arte (Rua Barro Vermelho, 32, Rio Vermelho. Tel: 3347-4929

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