10 agosto 2019

Primavera nos dentes: a história do Secos & Molhados (02)


Primavera nos dentes registra com riqueza de detalhes o período da formação clássica da banda – sem Ney e Conrad, João Ricardo levaria adiante Secos & Molhados por alguns poucos anos, sem o sucesso anterior. Para o livro, o autor conversou com jornalistas, músicos, produtores, além do trio central. Os três não se falam há muitos anos, mas, de acordo com Miguel De Almeida, todos o receberam de peito aberto para o livro.



Sobre o fim abrupto do Secos & Molhados (Ney e Conrad deixaram o grupo e João Ricardo ficou sabendo da saída deles, em agosto de 1974, pelos jornais) Miguel se lembra de uma conversa que teve, durante a confecção do livro, com o produtor André Midani. “Ele me disse que havia faltado uma espécie de Coronel Parker (que foi agente de Elvis Presley) para dizer que cada um deles parasse um mês, ficasse cada um em seu canto, namorasse. Eles faziam de dois a três shows por dia, corriam o Brasil para cima e para baixo, dormiam em carros. Ninguém aguenta isto. O sucesso os devorou”, avalia Miguel De Almeida.




O título escolhido por Almeida parece resumir a trajetória do grupo: “Primavera nos dentes” é uma canção que compõe o primeiro LP do Secos & Molhados, cuja letra é de autoria do jornalista português João Ricardo, um dos responsáveis pela criação do grupo, e de João Apolinário, seu pai, também jornalista e o pivô, mais tarde, da separação da turma. A letra da música tem muito a ver com a história de cada um de seus integrantes: João Ricardo, que segurou entre os dentes o sonho de lançar o grupo; Gérson Conrad, que não pulou do barco mesmo sendo chamado de “veado” por pintar o rosto (outros músicos, que chegaram a integrar a banda, não aguentaram a pressão); e Ney Matogrosso, que saiu do Mato Grosso (hoje do Sul) com o sonho de ser ator e acabou se tornando um dos maiores intérpretes do Brasil. Diz a canção: “Quem tem consciência para ter coragem/ Quem tem a força de saber que existe/ E no centro da própria engrenagem/ Inventa a contramola que resiste”.

 


Ironicamente, em plena ditadura militar, apoiada por quem defendia a moral e os bons costumes, não foi a dupla Dom & Ravel, com “Eu te amo, meu Brasil”, que ganhou o coração de homens, mulheres e crianças, mas um grupo ousado como Secos & Molhados. Os versos “Nos fios tensos da pauta de metal / As andorinhas gritam / Por falta de uma clave de sol” encerram-se junto com a música, conferindo-lhe força. A crítica à ditadura está latente nesta e em outras canções, como “Assim Assado”. Composta sem pretensão e considerada infantil, ela satiriza os militares com figura do Guarda Belo, vilão do desenho animado Manda-Chuva. A melodia contrapõe a agressividade da guitarra à batida leve e contagiante, pontuada pelas frases melódicas da ocarina.

 


Aspecto marcante do álbum é sua força poética, associada à sonoridade inovadora. Apropriando-se de elementos do folk e do rock internacional, as composições contrastam os violões de seis e 12 cordas de João e Gerson e as harmonias vocais de seus integrantes – Ney cantando uma oitava acima em relação aos demais. O grupo aproveita a tendência libertária, base rítmica e instrumentos eletrificados do rock, e acrescenta outras referências musicais. “O Vira” é resultado da parceria de João Ricardo com a cantora e compositora Luhli (1945) anterior à criação do grupo. Surge como um folk, misturando o gênero musical e coreográfico do folclore português com base rítmica e guitarras distorcidas do rock. Na segunda parte, é marcado pelo acordeom de Zé Rodrix. A música torna-se o hit do carnaval de 1974.



A maquiagem pesada, que se tornaria uma marca registrada da banda, surgiu logo no primeiro show, por obra do acaso. “O Ney, que interpretava um marinheiro na peça A Viagem, no próprio Ruth Escobar, chegou atrasado para o show usando a maquiagem do espetáculo”, lembra Gerson Conrad. “Luli, inspirada por uma peça em cartaz no Rio (Jardim das Borboletas), gostou e complementou com purpurina. Dez minutos antes de entrar, todos assumimos a maquiagem”. Não foi à toa que o produtor da tal peça carioca, Paulinho Mendonça, tornou-se um colaborador da banda, assinando o hit “Sangue Latino”.

 


O impacto na plateia foi instantâneo. O corpo desnudo, os trejeitos e a voz de contratenor de Ney, o aparato visual e a música, simples, porém sofisticada, causaram efeito arrasador nos presentes e a banda foi aplaudida de pé. A crítica relacionou a chamada “onda andrógina” da escrachada trupe de atores-bailarinos como o teatral Dzi Croquettes (de Lennie Dale, Paulette e Ciro Barcellos) e à estética glitter que ocorria na Inglaterra e nos Estados Unidos. O livro também comenta a estranha coincidência do lançamento da banda de rock and roll americana Kiss em 1974. Os quatro integrantes têm o rosto pintado em branco e preto e se aproxima muito o estilo utilizado por Ney Matogrosso.

 


Em junho de 1974, eles gravaram o segundo álbum em absoluto pé de guerra, lutando por maior participação artística e divisões mais justas. Menos roqueiro, superproduzido, o disco seguia de forma menos inspirada a fórmula do disco anterior. Durante as gravações, Ney e Gerson receberam o contrato da S&M para que dela fossem funcionários. “Foi a gota d’água”, segundo Conrad. Quando o novo disco seria lançado em aparição em rede nacional no Fantástico, Ney e Gerson anunciam que estão deixando o grupo. Era agosto de 1974 e, apesar do sucesso de faixas como “Flores Astrais” (regravada anos depois pelo RPM), e das boas vendas iniciais, o disco foi tido como natimorto pela própria gravadora. Todos os três partiram para carreiras-solo, todas com momentos brilhantes. Como já era esperado, a mais bem-sucedida foi a de Ney Matogrosso, que construiu trajetória como o maior showman do Brasil.



Depois de dois álbuns de repercussão velada, João Ricardo voltou a usar o nome Secos & Molhados no final de 1977, com Lili Rodrigues (de timbre vocal bastante próximo ao de Ney), Wander Taffo (guitarra), João Ascensão (baixo) e Gel Fernandes (bateria). A despeito do esquema promocional e de uma música incluída em trilha de novela global (a interrogativa “Que Fim Levaram Todas as Flores?”), o projeto não vingou. O violonista tentou por diversas vezes ressuscitar o grupo ao longo dos anos seguintes, mas o impacto nunca se repetiu.

 


Decerto, o Secos & Molhados criado por João em 1970 tinha muito a fazer. Mas deixou, de qualquer forma, uma marca musical e libertária sem precedentes na cultura brasileira. O brilho foi fugaz, mas intenso.

 


Direto Recado: “Como diz o velho ditado,/em boca fechada não entra mosquito./E também, não gera conflito/que possa deixá-los preocupados./Talvez, fosse melhor deixar que/vivesse o mito./Deixem uma só vez, o legado de lado/já não temos que ser,/nem Secos, nem Molhados/meus caros amigos./Esse é meu Direto Recado,/já não temos que ser,/nem Secos, nem Molhados” (Letra e música: Gerson Contad)

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