“Quem tem consciência pra se ter coragem/Quem
tem a força de saber que existe/E no centro da própria engrenagem/Inventa
contra a mola que resiste//Quem não vacila mesmo derrotado/Quem já perdido
nunca desespera/E envolto em tempestade, decepado/Entre os dentes segura a
primavera”. Trechos da música "Primavera nos dentes", composta pelos
artistas João Ricardo e João Apolinário, gravada pelo grupo "Secos e
Molhados", no homônimo álbum de estreia, lançado em 1973, início do
período mais agudo da ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985.
Durante dois anos um grupo musical
revolucionou a cultura e os costumes brasileiros. Combinava de forma inédita,
antropofagia musical, androginia e desafiadora modernidade. A ousadia importunou
a moral conservadora, o preconceito da classe artística e os interesses de
gravadoras multinacionais. E bateu de frente com a censura da ditadura militar.
Ninguém da intelectualidade musical da época falava sobre a banda, porque eles incomodavam.
A história do grupo que marcou
definitivamente a música brasileira e o comportamento do jovem que vivia à
sombra da ditadura militar é contada pelo jornalista Miguel De Almeida no livro
Primavera nos dentes: a história do Secos & Molhados (Três Estrelas). Nas
quase 400 páginas da obra (sendo 32 de imagens), Miguel reconstrói os
bastidores desse fenômeno da MPB cujos recordes ainda hoje custam a ser
superados. “Acho que essa história nunca chegou a ser escrita por várias
razões. Há, por parte da chamada elite da música brasileira, um silêncio sobre
os Secos & Molhados”, diz o autor.
Em 1973 o Brasil era um lugar cheio de
problemas. Havia uma ditadura militar no comando do país, “cuja força das armas
legitimava a instituição a prender e desaparecer com quem julgasse elemento
perigoso”. “A polícia adorava amedrontar os jovens”. “Não bastasse a violência
policial nas ruas, havia ainda a Censura Federal a pesar sobre todas as cabeças
inquietas”. É nesse ambiente que João Ricardo, Ney Matogrosso e Gerson Conrad
colocava na mesa temas como a antropofagia musical, androginia e o lúdico da
cultura. Tudo isso apoiado em versos de Oswald de Andrade, Manuel Bandeira,
Solano Trindade e Fernando Pessoa.
A iconografia do Secos & Molhados, com
gestos e figurinos, destoava naquele momento no cenário musical e se tornava
logo um fato comportamental. Jovens, crianças e mulheres foram as primeiras a
pular nas canções do grupo. O prosaico nome de Secos & Molhados surgiu
antes do aparecimento de grandes supermercados. Na época a existência de
pequenos armazens onde se vendia de tudo eram chamados de secos e molhados. No
início daquela década o cenário musical do Rio e São Paulo estava tomado por
bandas de rock com nomes Made in Brazil, Joelho de Porco, O Terço, A Bolha,
Casa das Máquinas, Som Nosso de Cada Dia, Vímana etc.
A estreia oficial da formação histórica do
Secos & Molhados aconteceu no dia 10 de dezembro de 1972, como também o
lançamento de Ney Matogrosso no cenário musical brasileiro. Foi quando o
público descobriu a voz de castrato de um hippie muito magro e de olho
escandidos.
O ano de 1973 marcaria a explosão do Secos
& Molhados e a consolidação da indústria fonográfica como expressão de
grande púbico. As belas canções em arranjos contemporâneos, a voz de Ney, a
postura andrógena, desembocaram naquilo que a
florescente indústria cultural brasileira buscava: a junção ainda
inédita de modernidade e apelo popular.
Saídos do anonimato, foram catapultados ao
maior sucesso da música popular brasileira: 1 milhão de copias vendidas do
primeiro disco (Roberto Carlos, o cantor com mais discos vendidos na época,
alcançaria um número em torno de 300 mil) além de outro recorde: apresentou
parra 20 mil pessoas no Maracanãzinho, no Rio em fevereiro de 1974.
A capa do primeiro disco do grupo é
impactante. O fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues criou a imagem de uma mesa
pronta para a ceia com os produtos de mercadinhos chamados de “secos e
molhados” e as quatro cabeças dos músicos maquiadas, servidas, uma em cada
prato. Grupo que uniu a poesia de Oswald de Andrade com a de Vinicius de
Moraes, obteve um sucesso fenomenal com destaque à performance de Ney e
interferiu no comportamento da sociedade daquele momento.
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