09 agosto 2019

Primavera nos dentes: a história do Secos & Molhados (01)


“Quem tem consciência pra se ter coragem/Quem tem a força de saber que existe/E no centro da própria engrenagem/Inventa contra a mola que resiste//Quem não vacila mesmo derrotado/Quem já perdido nunca desespera/E envolto em tempestade, decepado/Entre os dentes segura a primavera”. Trechos da música "Primavera nos dentes", composta pelos artistas João Ricardo e João Apolinário, gravada pelo grupo "Secos e Molhados", no homônimo álbum de estreia, lançado em 1973, início do período mais agudo da ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985.

 


Durante dois anos um grupo musical revolucionou a cultura e os costumes brasileiros. Combinava de forma inédita, antropofagia musical, androginia e desafiadora modernidade. A ousadia importunou a moral conservadora, o preconceito da classe artística e os interesses de gravadoras multinacionais. E bateu de frente com a censura da ditadura militar. Ninguém da intelectualidade musical da época falava sobre a banda,  porque eles incomodavam.



A história do grupo que marcou definitivamente a música brasileira e o comportamento do jovem que vivia à sombra da ditadura militar é contada pelo jornalista Miguel De Almeida no livro Primavera nos dentes: a história do Secos & Molhados (Três Estrelas). Nas quase 400 páginas da obra (sendo 32 de imagens), Miguel reconstrói os bastidores desse fenômeno da MPB cujos recordes ainda hoje custam a ser superados. “Acho que essa história nunca chegou a ser escrita por várias razões. Há, por parte da chamada elite da música brasileira, um silêncio sobre os Secos & Molhados”, diz o autor.

 


Em 1973 o Brasil era um lugar cheio de problemas. Havia uma ditadura militar no comando do país, “cuja força das armas legitimava a instituição a prender e desaparecer com quem julgasse elemento perigoso”. “A polícia adorava amedrontar os jovens”. “Não bastasse a violência policial nas ruas, havia ainda a Censura Federal a pesar sobre todas as cabeças inquietas”. É nesse ambiente que João Ricardo, Ney Matogrosso e Gerson Conrad colocava na mesa temas como a antropofagia musical, androginia e o lúdico da cultura. Tudo isso apoiado em versos de Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Solano Trindade e Fernando Pessoa.



A iconografia do Secos & Molhados, com gestos e figurinos, destoava naquele momento no cenário musical e se tornava logo um fato comportamental. Jovens, crianças e mulheres foram as primeiras a pular nas canções do grupo. O prosaico nome de Secos & Molhados surgiu antes do aparecimento de grandes supermercados. Na época a existência de pequenos armazens onde se vendia de tudo eram chamados de secos e molhados. No início daquela década o cenário musical do Rio e São Paulo estava tomado por bandas de rock com nomes Made in Brazil, Joelho de Porco, O Terço, A Bolha, Casa das Máquinas, Som Nosso de Cada Dia, Vímana etc.

 


A estreia oficial da formação histórica do Secos & Molhados aconteceu no dia 10 de dezembro de 1972, como também o lançamento de Ney Matogrosso no cenário musical brasileiro. Foi quando o público descobriu a voz de castrato de um hippie muito magro e de olho escandidos.



O ano de 1973 marcaria a explosão do Secos & Molhados e a consolidação da indústria fonográfica como expressão de grande púbico. As belas canções em arranjos contemporâneos, a voz de Ney, a postura andrógena, desembocaram naquilo que a  florescente indústria cultural brasileira buscava: a junção ainda inédita de modernidade e apelo popular.

 


Saídos do anonimato, foram catapultados ao maior sucesso da música popular brasileira: 1 milhão de copias vendidas do primeiro disco (Roberto Carlos, o cantor com mais discos vendidos na época, alcançaria um número em torno de 300 mil) além de outro recorde: apresentou parra 20 mil pessoas no Maracanãzinho, no Rio em fevereiro de 1974.



A capa do primeiro disco do grupo é impactante. O fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues criou a imagem de uma mesa pronta para a ceia com os produtos de mercadinhos chamados de “secos e molhados” e as quatro cabeças dos músicos maquiadas, servidas, uma em cada prato. Grupo que uniu a poesia de Oswald de Andrade com a de Vinicius de Moraes, obteve um sucesso fenomenal com destaque à performance de Ney e interferiu no comportamento da sociedade daquele momento.

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