20 novembro 2015

Nego Fugido, tesouro do patrimônio imaterial do município de Santo Amaro


Há quase um século, na pequena vila de pescadores de Acupe, distrito de Santo Amaro, no recôncavo
baiano, é apresentada todos os anos, uma manifestação que não existe igual em nenhum outro lugar do mundo: o Nego Fugido. A origem dessa expressão cultural ainda não se sabe quando teve início, mas o fato é que por suas características e estruturas dramáticas, o Nego Fugido é definido por antropólogos como sendo uma “ópera popular”, um “tesouro do patrimônio imaterial” de Santo Amaro.

As ruas de paralelepípedo do pequeno distrito santamarense se torna palco para a exibição de um grande espetáculo de teatro a céu aberto. A manifestação mexe com feridas históricas da gênese brasileira e impressiona pela atuação de seus protagonistas. A encenação recria e reconta as tentativas de fuga do negro para a tão sonhada liberdade contra o regime escravocrata que imperou no Brasil até 13 de maio 1888. Reza a lenda que para se livrarem da escravização, os homens se refugiavam nas matas e lá se vestiam com folhas de bananeira para se camuflar.

CIDADE MUNDIAL DA PAZ - “Esse é o nosso relato, a versão de uma comunidade de pescadores, remanescentes de escravos africanos de origem nagô”, explica Monilson dos Santos, diretor e membro do Grupo Nego Fugido. Por conta da tradicional manifestação libertária, Acupe será premiada em julho deste ano como a “Cidade Mundial da Paz” pela Fundazione Campana degli Cadutti, uma importante fundação italiana criada pelo papa Pio XII após a Segunda Guerra Mundial, com a missão de promover a paz por meio de ações sociais antiviolência em todo o mundo.

A iniciativa da premiação surgiu em 2007, quando o diretor de teatro baiano Paulo Dourado (que, na época, era coordenador de arte e cultura da Universidade Federal da Bahia) convidou o diretor do Teatro Potlach, da Itália, Pino di Buduo, para assistir a uma apresentação da obra. “Fiquei particularmente interessado pela autenticidade da apresentação, pelo lirismo e pelo teatro visceral do Nego Fugido, que é simples, mas ao mesmo tempo aborda diversos elementos da arte brasileira para falar de valores promotores da paz, através da libertação”, disse o italiano.

Em seguida, Pino apresentou o grupo aos diretores da fundação italiana, e o título vai possibilitar visibilidade tanto para a comunidade de Acupe quanto para as diferentes manifestações populares do recôncavo baiano. “Nós somos desassistidos das políticas públicas de cultura. A intenção, a partir deste prêmio honorífico, é alertar a sociedade para a importância de manter as nossas tradições culturais”, disse Monilson dos Santos.

LIBERDADE CONQUISTADA - O Nego Fugido lembra um Brasil escravocrata e cruel, num teatro de rua movimentado. Palco da colonização da Bahia, o recôncavo foi a região que concentrou a maior parte da
mão-de-obra escrava trazida da África para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar e nos engenhos. A representação do Nego Fugido mantém viva a história de Acupe, cujos integrantes do grupo teatral descendem de escravos negros. Através da encenação, os moradores de Acupe dão uma versão diferente à história oficial da libertação dos escravos: uma conquista dos negros e não uma concessão feita pela princesa Isabel.

A liberdade se apresenta à frente do escravo, que na tentativa de fuga é caçado e amarrado, para depois comprar a sua alforria, mas a palavra é descumprida e vem a revolta dos caçadores enganados e a execução sumária do rei e seus soldados. Surge então a fada madrinha, que a todos ressuscita e liberta, acalentando o sonho de esperança. As apresentações ocorrem nos domingos de Julho, mês fraco para a pescaria em Acupe e, ao mesmo tempo, de muita festa no Recôncavo. No passado, participavam somente pescadores, mas há alguns anos ganhou a participação de mulheres e crianças.

Assim as manifestações da cultura popular sobrevivem em Santo Amaro da Purificação. Com as cabeças pintadas com carvão, os lábios avermelhados com crepom molhado e saias de folhas, pessoas de Acupe lutam para ter êxito em manter de pé o Nego Fugido, folguedo tradicional da região de Santo Amaro que revive a época da perseguição feita aos habitantes dos quilombos pelos capitães-do-mato e pelos militares.

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