A relação de poder
à base do fenômeno
da prostituição se
evidencia em “Folhetim”
(1977/8).
Focaliza a figura
da prostituta que oferece
os seus encantos – “Se
acaso me quiseres/sou
dessas mulheres/que só
dizem sim...” feita
para uma personagem
da “Ópera do Malandro”
que inclui também “O
Meu Amor” e “Geni
e o Zepelim”. A
mulher vai manipular
o homem, ludibriando-o
com meras verdades, e
finalmente descartando-o:
“E eu te farei
as vontades/Direi meias
verdades/Sempre à
meia-luz/E te
farei, vaidoso, supor/Que
és o maior e
que me possuis//Mas
na manhã seguinte/Não
conta até vinte/Te
afasta de mim/Pois
já não vales nada/És
página virada/Descartada
do meu folhetim”.
Mas a
festa dionisíaca, a grande
canção visionária e utópica,
em que surge, com
força e intensidade,
o Eros do povo,
uma explosão em que
o erótico e o
político convergem
num mesmo movimento
liberador cósmico está
nesta canção: “O que
será que será/ Que
vive nas idéias desses
amantes/ Que cantam
os poetas mais delirantes/
Que juram os profetas
embriagados/ Está na
romaria dos mutilados/
Está na fantasia dos
infelizes/ Está no
dia-a-dia das
meretrizes/ No plano
dos bandidos, dos desvalidos/
Em todos os sentidos/Será
que será...”
Chico Buarque
capta o recado das
vozes que sussurram
na noite de uma
realidade desconhecida,
nas alcovas, no breu
das tocas, nos botecos,
nos mercados: as duas
canções que recebem
o nome de O
Que Será (À Flor
da Pele e À
Flor da Terra) sugerem
a convergência do
erótico e do
político, subordinados
a um só princípio.
O que será, que
não tem descanso nem
cansaço, esse inominável;
que se recorta no
avesso do princípio
de realidade (limite, sentido,
certeza, tamanho, governo,
censura, decência,
vergonha), realidade,
que fica pairando como
uma fantasmagoria castradora
sobre a expansão da
energia, ou, como
chamá-lo?, libido, desejo,
vontade de contato,
amor. A poesia/música
de Chico, esse artesão
habilíssimo, capta a
entranha sensível, e
por isso é tão
fina para o erótico,
o social e o
feminino.
A letra
trata daqueles que estão
fora da esfera do
poder, excluídos da vida
econômica. Tanto osamantes, poetas, profetas
(seres que habitam o
mundo da fantasia) como
os marginais. Excluída
da esfera da produção,
alijada do mundo
do poder: eis o
lugar social da mulher
na sociedade patriarcal:
“O
que não têm decência,
nem nunca terá
O
que não tem censura,
nem nunca terá
O
que não faz sentido
O
que será que será
Que
todos os avisos não
vão evitar
Porque
todos os risos vão
desafiar
Porque
todos os sinos irão
repicar
Porque
todos os hinos irão
consagrar
E
todos os meninos irão
desembestar
E
todos os destinos irão
se encontrar
E
mesmo o Padre Eterno,
que nunca foi lá
Olhando
aquele inferno vai abençoar
O
que não têm governo,
nem nunca terá
O
que não tem vergonha,
nem nunca terá
O
que não tem juízo”
(O Que Será – À
Flor da Terra – 1976).
“Isso”
de que ele fala
e que canta, nunca
é nomeado. Não tem
nome, não tem vergonha,
“o que será que
será?”. A existência
de proibições e/ou
punições a algo
que seria puramente
natural torna-se
aquilo de que se
deve ter vergonha. Aquele
“inferno” que é
preciso coibir, refrear,
ocultar, disfarçar.
Como escreveu o escritor
Bataille, o sexo,
nos humanos, é erotismo
e este é impossível
sem as interdições
e as transgressões.
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