O cangaço está presente em diversas produções
culturais: folhetos de cordel, xilogravuras, folclore, romances, música,
teatro, cinema, quadrinhos, games, etc. Se a cultura tida como erudita, por
meio da literatura regionalista de José Américo de Almeida, José Lins do Rego,
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa contribuiu na divulgação, no início dos anos
1960 o canga;co foi veiculado por intelectuais de esquerda como símbolo da
revolução social, inspirando filmes do Cinema Novo, artes plásticas e ensaios
sociológicos.
Toda essa forte presença em nosso imaginário social
só foi divulgado do ponto de vista histórico, fragmentário e esporádico. Não
foi diferente nas histórias em quadrinhos da época. Desde a década de 1930 que
a saga do canga;co alimenta o mito – na dualidade heroi ou bandido – nos
quadrinhos. Assim podemos citar Vida de Lampeão por Euclides Santos, publicada
no jornal Noite Ilustrada (agosto a dezembro de 1938); Raimundo, o Cangaceiro,
de José Lanzelloti (1953); Cangaceiros (adaptação do livro de José Lins do
Rego) de André Le Blanc (1954); Aventuras de Milton Ribeiro o Cangaceiro, de
Gedeone Malagola (1957);
Jerônimo, o Herói do Sertão desenhado por Eduardo
Rodrigues (1957); Zeferino e Grauna, de Henfil (1967); Os Quatro Cavaleiros do
Apocalipse, de Jô Oliveira (1976); O Ataque de Lampião à Mossoró de Emanoel
Amaral e Aucides Sales (1988); Mulher Diaba no Rastro de Lampião, escrita por
Ataíde Braz e desenhada por Flávio Colin (1994); Homens de Couro de Wilson
Vieira (1997); Lampião em Quadrinhos, de Ruben Wanderley Filho (1997);
Caatinga, de Hermann (1997); Lampião...Era o cavalo do tempo atrás da besta da
vida, de Klévisson (1998); Turma do Xaxado, de Cedraz (1998); Sertão Vermelho,
de Haroldo Magno e Edvan Bezerra (2003); Cangaceiros, Homens de Couro, de
Wilson Vieira e Eugênio Colonnese (2004); O Cabeleira, de Leandro Assis,
Hiroshi Maeda e Allan Alex (2008); Bando de Dois, de Danilo Beyruth (2009);
Lucas da Vila de Sant'Anna da Feira, de Marcelo Lima e Hélcio Rogerio (2013)
Este artigo analisa a primeira história em
quadrinhos a abordar o cangaço. O pesquisador Durval
Muniz de Albuquerque em
sua obra A Invenção do Nordeste e outras artes (Cortez/Fundação Joaquim Nabuco,
1999) informou que “o nordestino, assim como o Nordeste, serão dotados de
diferentes máscaras dependendo da perspectiva com que são abordados, do regime
discursivo em que são inseridos, do momento em que são tematizados”. Para
Albuquerque, é dentro da produção cultural e menos no discurso político que se
elabora o conceito de região. Assim, ele enumera obras de diversos escritores
como representativas desta ideia de Nordeste. O universo das histórias em
quadrinhos não foi contemplado em sua pesquisa.
Assim, o Nordeste surge como discurso da esquerda
na época da Revolução de 1930 e, principalmente, durante o Estado Novo, como
região problema, das camadas sociais vivendo na miséria, das injustiças a que
estavam submetidas e das práticas e discursos da revolta popular ocorridas
nesse espaço.
Disputa de terras (um tema presente no cangaço) era
resolvida entre os próprios fazendeiros. E nessa guerra alguns fazendeiros
(tidos como coronéis) começaram a criar seu exército particular. Eles precisavam de proteção pessoal e para
isso contratavam capangas, verdadeiros guardas costas que o acompanhavam nas
empreitadas e viagens. Esses jagunços (palavra de origem africana junguzu, da
língua Quibundo, significando soldado) tem o mesmo significado da palavra
capanga (soldado a serviço de um chefe político). Com o tempo, jagunços
descontentes tornaram-se independentes e prestavam serviços a quem lhes
pagassem mais. Esses grupos portavam o rifle apoiados nos ombros, semelhante a
uma canga (apoio de madeira usado para unir os bois nos trabalhos pesados) e
foram denominados cangaceiros. O primeiro deles, Jesuíno Brilhante, recebeu a
alcunha de O Cabeleira. Outro que adquiriu fama, Sebastião Pereira, conhecido
por Sinhô Pereira. O Governo Federal sugeriu o apoio do bando de Lampião para
combater esses e outros rebeldes em troca, concedia-lhe a anistia pelos crimes
cometidos.
A representação social do cangaço como sinônimo da
violência gratuita do prazer de matar se insere logo nos anos 1930 a partir da
oposição entre espaços civilizado e primitivo. Assim a leitura feita é de que o
bandido está associado ao mundo atrasado e primitivo. E nesses discursos emerge
conteúdo pejorativo (facínora, celerado) e animosidade (fera). As narrativas do
cangaço é destituído de qualquer conteúdo social, afirmando apenas como produto
de um instinto animalesco.
A leitura dos quadrinhos publicados no jornal A
Noite Ilustrada, do Rio de Janeiro, no período de agosto a dezembro de 1938
traça a vida do famoso cangaceiro desde sua infância até sua morte. Com o
título de “Vida de Lampeão”, Euclides Santos aproveitou o momento imediato após
a morte de Lampião para lançar seus quadrinhos. Dividiu a obra em 20 capítulos.
Mesmo não citando a fonte de sua pesquisa narrativa, nota-se a influência das
reportagens do jornalista Melchiades da Rocha, publicadas no jornal A Noite e
depois transformadas em livro (Bandoleiros das Catingas).
Há sequências de crimes e violências de Lampião e
seu bando. E os desenhos acentuam detalhes dos assassinatos ou tiroteios contra
os volantes que os perseguiam. Um erro que vai ser reproduzido em diferentes
obras significativas sobre o cangaço é o desenhista Euclides Santos colocar
cangaceiros montados a cavalo. Sabe-se, por fontes fidedignas, que os
cangaceiros não andavam a cavalo e sim a pé.
Mesmo feito às pressas, no calor do tema que estava
em evidência no momento da morte de Lampião, ressaltada em jornais, cordéis e
noticiário do rádio, é preciso que obras realizadas neste século ressalte as
determinações econômicas, políticas e sociais para compreendermos o Nordeste e
o fenômeno do cangaço na primeira metade do século XX. A luta entre as famílias
Pereiras e Carvalhos foi um dos motivos maiores do acesso de Lampião ao
cangaço, e poucos analisam esse fato. Havia um conflito histórico de terra,
poder, religião e classes antagônicas. Para muitos, Lampião era a esperança do
povo sofrido do sertão e ele serviu para dizer a todos que o sertão existe
naquela época tida como invisível aos olhos sulistas.
Nessa época, as revistas tinham a relevância dos
jornais como agentes de propagação de valores culturais, em particular por
serem de leitura fácil pelo seu conteúdo condensado e virem numa publicação de
preço acessível. As revistas tinham a crítica como fio condutor, que pode ser
expresso no humor negro e sarcasmo presentes nos textos, poesias, caricaturas,
charges e histórias em quadrinhos, colaborando na consolidação do gênero das
revistas de tipo ilustrada.
Os quadrinhos, charges e caricaturas atingiam um
público mais amplo a quem, os textos não sensibilizavam,. Ou sequer eram entendidos,
devido à grande quantidade de analfabetos à época. As publicações, na forma de
revistas ou periódicos, tinham nessas artes um instrumento de retratação das
lutas entre as camadas sociais do período e a evolução da corrente
abolicionista, com o crescimento do mesmo para além da intelectualidade.
Como as histórias em quadrinhos eram tidas, na
época, como subliteratura ou leitura para criança, nota-se que havia muita
dificuldade de se criar espaço para os desenhistas brasileiros porque na época,
sem nenhum sindicato distribuidor para lhe dar proteção, os desenhistas de
quadrinhos tinham que enfrentar os quadrinhos norte americanos (Batman,
Superman, Pato Donald, Mickey entre outros) que eram distribuídos em todos os
jornais a “preço de banana”, devido a força de seu syndicate (agência de
distribuição eficiente).
Assim, a consolidação de uma indústria
quadrinística de base nacional com autores (roteiristas, desenhistas, arte
finalista) produzindo temas voltados para a nossa realidade estava no começo na
época do cangaço. E seguindo a cartilha do mito heroico dos quadrinhos norte
americanos onde o foco do bem versus mal era o destaque maior, sem aprofundar
questões sociais, os quadrinhos do cangaço seguiram a ótica da diabolização
e/ou idealização, produtos de um universo simbólico que se abre a vários
desdobramentos
TERRAS -
O sertão nordestino
começou a ser
desbravado no início
do século XVIII. Não
havia como assegurar
a demarcação das terras,
a distância e o
abandono do poder
oficial constituído deixava os
envolvidos em total
isolamento. À medida
em que os fazendeiros
se estruturavam, ganhavam
poder, prestígio e autonomia
política. A disputa
entre terras era resolvida
entre os próprios fazendeiros,
já que o governo
não intervia. Nessa guerra,
alguns fazendeiros (coronéis)
começaram a criar
o seu exército particular.
Eles precisavam de proteção
pessoal e, para
isso, contratavam capangas,
verdadeiros guarda costas
que os acompanhavam
nas empreitadas e
viagens.
O capanga
(soldado a serviço
de um chefe político)
também era conhecido
como jagunço (palavra de
origem africana junguzu, da
língua Quibundo e significa
soldado). Com o
tempo, jagunços descontentes
tornaram-se independentes
e prestavam serviços a
quem lhes pagasse mais.
A maneira co a
qual os jagunços portavam
o rifle, apoiados nos
ombos, semelhante a uma
canga (apoio de madeira,
usado para unir os
bois nos trabalhos
pesados em geral),
foram denominados cangaceiros.
Um dos
primeiros cangaceiros
a adquirir notoriedade
foi Jesuíno Brilhante
que recebeu a alcunha
de O Cabeleira.
Outro que adquiriu fama
foi Sebastião Pereira, conhecido
por Sinhô Pereira. Mais
tarde
é que surgiu o
cangaceiro mais famoso
do Brasil, Lampião. Na
época, o governo federal
lutava sem sucesso para
combater um grupo
de revoltosos. A
solução sugerida foi
o apoio do bando
de Lampião para combater
esses rebeldes, em troca,
concedia-lhe anistia pelos
crimes cometidos. Os oficiais
e soldados que perseguiam
Lampião ficaram inconformados
e partiram para a
luta. O acordo foi
anulado e Lampião
revoltado com a
falta de palavra e
pulso das autoridades
começou a atacar
cidades e matar
todo policial que encontrasse.
ILUSTRADA – A
revista carioca A
Noite Ilustrada publicou a
maior cobertura da imprensa
sobre a morte do
mais famoso cangaceiro,
fato que evidencia
sua importância como
notícia e lenda.
Uma semana depois do
massacre contra os
cangaceiros, a publicação
estampou em suas
páginas centrais a
foto das cabeças decepadas
do bando de Lampião.
A revista enviou uma
equipe (fotógrafo e reporter)
do Rio de Janeiro
até o local, a
dois mil quilômetros
de distância, em pouco
mais de 24 horas.
Foram 28 páginas sobre
o massacre.
A redação
de A Noite Ilustrada
funcionava no centro
do Rio de Janeiro
(Praça Mauá) e onde
ficavam redações de
jornais, revistas e
emissoras de rádio
importantes. Lançada em
1930, a publicação
surgira como um
marco por sua qualidade
de impressão, graças ao
moderno sistema de
rotogravura. Pertencia
ao jornal A Noite,
mesmo diário fundado por
Irineu Marinho e Geraldo
Rocha. A Noite sobrevivera
ao longo da década
de 1930 sob o
duro castigo de ter
apoiado o grupo
derrotado pela Revolução
de 1930.
Com diversos
problemas financeiros,
o jornal se tornou
uma especie de órgão
a serviço de Getúlio
Vargas e radicalizou
seu oficialismo com
a decretação do Estado
Novo, em novembro de
1937. A orientação
editorial dava o
tom na cobertura
do massacre em Angicos
e no modo como
a tropa do Exército
foi tratada.
A edição
trazia o primeiro episódio
de uma série em
quadrinhos sobre a
vida do cangaceiro,
roteirizada e quadrinizada
por Euclides Santos. Com
dez quadrinhos cada página,
iniciava uma série
publicada duas vezes
por semana no jornal
A Noite. Nos cinco
meses seguinte.
O chefe
dos volantes exibiu em
diversas cidades, as
cabeças dos cangaceiros.
O motivo era evitar
alguma lenda de negação
do fato. Depois seguiram
para Salvador e permaneceram
por seis anos na
Faculdade de Odontologia
da Universidade Federal
da Bahia. Por mais
de três décadas, as
cabeças ficaram expostas
no Museu Antropológico
Estácio de Lima,
no prédio do IML
Nina Rodrigues, no Terreiro
de Jesus, em Salvador.
Atraíam milhares de
curiosos todos os
anos, que queriam ver
as cabeças de Lampião
e Maria Bonita.
As fotos
publicadas em A
Noite Ilustrada corriam o
Brasil e o mundo.
E, por mais que
a
publicação chamasse Lampião
de facínora, o resultado
é que não conseguiu
evitar que de suas
páginas nascesse uma
lenda que, como tal,
ainda fascina. Seja em
cordel, literatura,
teatro, cinema, tevê
ou quadrinhos.
O quadrinista
Euclides Luís dos
Santos nasceu na cidade
pernambucana de Mussaré
em 1908. Pintor, desenhista
e caricaturista, foi
para o Rio de
Janeiro com seu
companheiro de viagem
na Sociedade Brasileira
de Belas Artes em
1931. No período de
1933 a 1955 colaborou
como ilustrador nas páginas
de A Noite, A
Noite Ilustrada, Vamos ler!
(onde ilustrou o romance
Oliver Twist de Dickens),
Carioca, O Cruzeiro,
O Malho e Revista
da Semana.
O historiador Herman Lima, que o focalizou na História da Caricatura no
Brasil (1963), referiu-se à intensidade de seu trabalho no campo da ilustração.
Como pintor recebeu as medalhas de prata e de ouro e o prêmio de viagem ao
estrangeiro no SNBA, do qual participou inclusive em 1964.
*OBS: Agradeço ao jornalista e pesquisador Luiz Eduardo Dorea que descobriu, em suas pesquisas sobre Lampião, os quadrinhos publicados na Noite Ilustrada.
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