“Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Mais que a lição da raiz
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião? (O Quinto Império)”
No sofrido recato de sua vida pessoal, deu-nos uma plena medida da grandeza humana, como poucos o terão feito. “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Franzino e atormentado homem, Pessoa foi um gigante da palavra poética, iluminado.
“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu. (Mar Português)
Com uma temática multiforme, mudando a cada instante a paisagem, o tempo e o espaço, a poesia de Fernando Pessoa é inquietante. Mergulhada nas subterrâneas entranhas, profundas e obscuras numa apreensão do mistério que a tudo prolonga, ele viveu fechado numa solidão misteriosa. Cheio de fagulhas de poesia ele se multiplicou para chegar ao seu “eu profundo”, reconstruído pelo sonho e pela poesia.
“O poeta é um fingidor.
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração. (Autopsicografia)”
Melancolia, introspecção, dor. Para transcender seu mundo modesto e solitário ele construiu heterônimos e, para cada um construiu biografia e estilo próprios. Alberto Caeiro fazia poemas bucólicos e pastoris. Álvaro de Campos era o responsável pelas mais inspiradoras e audaciosas poesias do seu criador. Ricardo Reis é o poeta das odes e da linguagem clássica. Bernardo Soares, autor de um diário lírico e metafísico intitulado “O Livro do Desassossego”. Antonio Mora, autor de “O Regresso dos Deuses”.
“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz. (Trecho de O Guardador de Rebanhos)”
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar. (Cancioneiro)”
No mundo inteiro, Pessoa é relançado, lido e considerado um dos gigantes da poesia do século XX. “Não sou nada/nunca serei nada/não posso querer ser nada/à parte isso, tenho em mim todos os sonhos/do mundo”.
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