Todos esses acontecimentos de golpe, prisão, despertam em Gil uma for postura mística, que se materializa no recurso radical à alimentação macrobiótica e num culto sincrético a Cristo, Xangô e Krishna. Em 1969, Gil e Caetano se vêem forçados a abandonar o Brasil, indo morar
“O Rio de Janeiro continua lindo/o Rio de Janeiro continua sendo/o Rio de Janeiro, fevereiro e março//Alô, alô, Realengo - aquele abraço!/alô, torcida do Flamengo - aquele abraço!/Chacrinha continua balançando a pança/e buzinando a moça e comandando a massa/e continua dando as ordens no terreiro//Alô, alô, seu Chacrinha - velho guerreiro/alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro/alô, alô, seu Chacrinha - velho palhaço/alô, alô, Terezinha - aquele abraço!//Alô, moça da favela - aquele abraço!/todo mundo da Portela - aquele abraço!/todo mês de fevereiro - aquele passo!/alô, Banda de Ipanema - aquele abraço!//Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/a Bahia já me deu régua e compasso/quem sabe de mim sou eu - aquele abraço!/pra você que meu esqueceu - aquele abraço!//Alô, Rio de Janeiro - aquele abraço!/Todo o povo brasileiro - aquele abraço!” (Aquele Abraço)
De volta ao Brasil, em 1972, Gil grava o disco “Expresso
“Começou a circular o Expresso 2222/que parte direto de Bonsucesso pra depois/começou a circular o Expresso 2222/da Central do Brasil/que parte direto de Bonsucesso/pra depois do ano 2000//Dizem que tem muita gente de agora/se adiantando, partindo pra lá/pra 2001 e 2 e tempo afora/até onde essa estrada do tempo vai dar/do tempo vai dar/do tempo vai dar, menina, do tempo vai//Segundo quem já andou no Expresso/lá pelo ano 2000 fica a tal/estação final do percurso-vida/na terra-mãe concebida/de vento, de fogo, de água e sal/de água e sal/de água e sal/ô, menina, de água e sal//Dizem que parece o bonde do morro/do Corcovado daqui/só que não se pega e entra e senta e anda/o trilho é feito um brilho que não tem fim/oi, que não tem fim/que não tem fim/ô, menina, que não tem fim//Nunca se chega no Cristo concreto/de matéria ou qualquer coisa real/depois de 2001 e 2 e tempo afora/o Cristo é como quem foi visto subindo ao céu/subindo ao céu/num véu de nuvem brilhante subindo ao céu” (Expresso 2222)
Depois de gravar o antológico disco em parceria com Jorge Bem, Gil lança em 1975, “Refazenda”, o primeiro da trilogia “re”, com um som basicamente acústico. Refazenda assinala tranqüila maturidade. É a busca do equilíbrio, do auto-conhecimento, a volta ecológica à natureza (sair da vanguarda para a retaguarda, se recolher às raízes), impregnada pela serenidade zen. Sua grande viagem ao ego interior surge de forma explícita na canção “Retiros Espirituais”.
“Nos meus retiros espirituais/descubro certas coisas tão normais/como estar defronte de uma coisa e ficar/horas a fio com ela/Bárbara, bela, tela de TV/você há de achar gozado/Barbarela dita assim dessa maneira/brincadeira sem nexo/que gente maluca gosta de fazer//Eu diria mais, tudo não passa/dos espirituais sinais iniciais desta canção/retirar tudo o que eu disse/reticenciar que eu juro/censurar ninguém se atreve/é tão bom sonhar contigo, ó/luar tão cândido//Nos meus retiros espirituais/descubro certas coisas anormais/como alguns instantes vacilantes e só/só com você e comigo/pouco faltando, devendo chegar/um momento novo/vento devastando como um sonho/sobre a destruição de tudo/que gente maluca gosta de sonhar//Eu diria, sonhar com você jaz/nos espirituais sinais iniciais desta canção/retirar tudo que eu disse/reticenciar que eu juro/censurar ninguém se atreve/é tão bom sonhar contigo, ó/luar tão cândido//Nos meus retiros espirituais/descubro certas coisas tão banais/como ter problemas ser o mesmo que não/resolver tê-los é ter/resolver ignorá-los é ter/você há de achar gozado/ter que resolver de ambos os lados/de minha equação/que gente maluca tem que resolver/eu diria, o problema se reduz/aos espirituais sinais iniciais desta canção/retirar tudo que eu disse/reticenciar que eu juro/censurar ninguém se atreve/é tão bom sonhar contigo, ó/luar tão cândido” (Retiros espirituais)
Ao mesmo tempo Gil começa a cutucar um tema tabu. Em “Pai e Mãe”, as figuras masculina e feminina começavam a perder a nitidez de seus contornos tradicionais. Detrás da rústica simplicidade e da densa poesia, Gil continua seu jogo sutil com incógnitas, ambigüidades e surpresas. Ainda no disco “Refazenda”, um trabalho de Gil em parceria com o acordeonista Dominguinhos, “Lamento Sertanejo”. Nesse trabalho, Gil mostra que é possível fazer música essencialmente brasileira com as mais variadas técnicas.
“Por ser de lá/do sertão, lá do cerrado/lá do interior do mato/da caatinga do roçado./eu quase não saio/eu quase não tenho amigos/eu quase que não consigo/ficar na cidade sem viver contrariado.//Por ser de lá/na certa por isso mesmo/não gosto de cama mole/não sei comer sem torresmo./eu quase não falo/eu quase não sei de nada/sou como rês desgarrada/nessa multidão boiada caminhando a esmo” (Lamento Sertanejo)
Também de grande movimentação na vida do artista e do cidadão Gil se mostra em 1976. Musicalmente, o fato mais significativo é sua participação com Caetano, Bethânia e Gal no conjunto Doces Bárbaros, um reencontro atualizado do grupo baiano. No início de 1977, Gil participa do Festival de Arte Negra da Nigéria e o contato direto com a cultura africana dá origem ao show e ao disco “Refavela”. No disco “Refavela”, três preciosidades. Gil canta a negritude em “Babá Alápalá” e “Refavela” e a outra, suave, ele diz que “o melhor lugar do mundo é aqui, e agora” na canção “Aqui e Agora”.
“Iaiá, kiriê, kiriê, iaiá//A refavela/revela aquela/que desce o morro e vem transar/o ambiente/efervescente/de uma cidade a cintilar//A refavela/revela o salto/que o preto pobre tenta dar/quando se arranca/do seu barraco/prum bloco do BNH//A refavela, a refavela, ó/como é tão bela, como é tão bela, ó//A refavela/revela a escola/de samba paradoxal/brasileirinho/pelo sotaque/mas de língua internacional//A refavela/revela o passo/com que caminha a geração/do black jovem/do black-Rio/da nova dança no salão//Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá//A refavela/revela o choque/entre a favela-inferno e o céu/baby-blue-rock/sobre a cabeça/de um povo-chocolate-e-mel//A refavela/revela o sonho/de minha alma, meu coração/de minha gente/minha semente/preta Maria, Zé, João//A refavela, a refavela, ó/como é tão bela, como é tão bela, ó//A refavela/alegoria/elegia, alegria e dor/rico brinquedo/de samba-enredo/sobre medo, segredo e amor//A refavela/Batuque puro/de samba duro de marfim/marfim da costa/de uma Nigéri/miséria, roupa de cetim//Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá” (Refavela)
Já o disco Realce fecha o ciclo com a luz e todas as cores, a luz refratada, dissociada em todas as suas miríades: o arco-íris.
Um comentário:
Meus parabéns ficou muito bom
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