“A raça humana é/uma semana/do trabalho de Deus//A raça humana é a ferida acesa/uma beleza, uma podridão/o fogo eterno e a morte/a morte e a ressurreição//A raça humana é/uma semana/do trabalho de Deus//A raça humana é o cristal de lágrima/da lavra da solidão/da mina, cujo mapa/traz na palma da mão//A raça humana é/uma semana/do trabalho de Deus//A raça humana risca, rabisca, pinta/a tinta, a lápis, carvão ou giz/o rosto da saudade/que traz do Gênesis/dessa semana santa/entre parênteses/desse divino oásis/da grande apoteose/da perfeição divina/na Grande Síntese//A raça humana é/uma semana/do trabalho de Deus” (Raça Humana)
O álbum “Raça Humana” revela um Gil preocupado com os mistérios da vida e com as lutas sociais e étnicas, temas presentes em outras fases de sua carreira. Dois momentos desse disco são “Vamos Fugir” e a “Raça Humana”.Em 1985 sai o álbum “Dia Dorim Noite Neon”, nele Gil canta um reggae dele e Liminha, “Barracos”. Os versos de Gil revelam uma escancarada crítica ao sistema. Tem também o afoxé “Touches Pás à Mon Pote”, letra em francês inspirada no slogan de uma campanha contra a discriminação racial. A preocupação com a paz racial no mundo retorna em “Oração pela Libertação da África do Sul”, um reggae em estado puro.
“Se o rei Zulu já não pode andar nu/se o rei Zulu já não pode andar nu/salve a batina do bispo Tutu/salve a batina do bispo Tutu//Ó, Deus do céu da África do Sul/do céu azul da África do Sul/tornai vermelho todo sangue azul/tornai vermelho todo sangue azul//Já que vermelho tem sido todo sangue derramado/todo corpo, todo irmão chicoteado – iô/senhor da selva africana, irmã da selva americana/nossa selva brasileira de Tupã//Senhor, irmão de Tupã, fazei/com que o chicote seja por fim pendurado/revogai da intolerância a lei/devolvei o chão a quem no chão foi criado//Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã/Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã/zelai por nossa negra flor pagã/zelai por nossa negra flor pagã//Sabei que o papa já pediu perdão/sabei que o papa já pediu perdão/varrei do mapa toda escravidão/varrei do mapa toda escravidão” (Oração pela Libertação da África do Sul)
Em 1987 saiu Gil em Concerto, onde o artista volta a mostrar sua simplicidade no cantar, “Eu Vim da Bahia”, fechando mais um ciclo, além da força dos “Filhos de Gandhi”.
“Eu vim/eu vim da Bahia cantar/eu vim da Bahia contar/tanta coisa bonita que tem/na Bahia, que é meu lugar/tem meu chão, tem meu céu, tem meu mar/a Bahia que vive pra dizer/como é que se faz pra viver/onde a gente não tem pra comer/mas de fome não morre/porque na Bahia tem mãe Iemanjá/de outro lado o Senhor do Bonfim/que ajuda o baiano a viver/pra cantar, pra sambar pra valer/pra morrer de alegria/na festa de rua, no samba de roda/na noite de lua, no canto do mar/eu vim da Bahia/mas eu volto pra lá/eu vim da Bahia” (Eu Vim da Bahia)
As diferentes fases da carreira de Gil expressam as experiências mais típicas de sua geração. A pluralidade, a diversidade, a receptividade, a flexibilidade e o colorido de cada momento caracterizam essa trajetória artística. Nesses anos de estrada, Gil tornou-se não apenas um músico brilhante, mas um compositor capaz de inspirar-se em praticamente todos os estilos de música brasileira, muitas vezes estabelecendo cruzamentos originais entre esses estilos e os ritmos africanos ou o rock. Sua música é sempre moderna e, embora sintonizada com os ritmos internacionais, jamais perde um agudo senso de brasilidade que é uma de suas características mais marcantes.
Vinte anos, sem dúvida, é muito pouco para esgotar a inspiração de um artista como Gilberto Gil. Sua arte meditativa e esfuziante, brasileira e internacional, negra e multirracional, pura e comprometida, é hoje, sem intenções, sem cálculo, tão política quanto metafísica, e, portanto, arte no mais alto sentido. Para encerrar o depoimento do cantor e compositor Arnaldo Antunes: “Gil é o receptivo. Luz onde as sombras se assentam, e que lhes dá contorno. Clareza que abraça o mistério sem temor. O maleável. `Transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando todos os sentidos´. A natureza, o princípio feminino (´a porção melhor que trago em mim agora´), o que recebe. É assim que as palavras se articulam nos encadeamentos rítmicos, melódicos, semânticos de suas canções”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário