Um capítulo obscuro da história da
música precisa ser revelado. A Igreja Católica praticava impunemente sua
calculada e cortante moral dupla. Desde 1587 os papas castigavam a castração
com excomunhão ou pena de morte, mas aceitavam com deleite os castrados em seus
corais ou como solistas. Ninguém mais que o apóstolo Paulo foi o culpado por
essa dupla estratégia, já que, segundo sua pronunciação bíblica, as mulheres
deviam se calar na igreja.
A prática de castração de jovens
cantores (ou castratismo) teve início no século XVI, tendo surgido devido à
necessidade de vozes agudas nos coros das igrejas da Europa Ocidental, já que a
Igreja Católica Romana não aceitava mulheres no coro das igrejas. No fim da
década de 1550, o duque de Ferrara tinha castrati no coro da sua capela. Está
documentada a sua existência no coro da igreja de Munique a partir de 1574 e no
coro da Capela Sistina a partir de 1599. Na bula papal de 1589, o papa Sisto V
aprovou formalmente o recrutamento de castrati para o coro da Igreja de S.
Pedro.
Na ópera, esta prática atingiu o seu
auge nos séculos XVII e XVIII. O papel do herói era muitas vezes escrito para
castrati, como por exemplo, nas óperas de Handel. Nos dias de hoje, esses
papéis são frequentemente desempenhados por cantoras ou por contra tenores. Todavia,
a parte composta para castrati de algumas óperas barrocas é de execução tão
complexa e difícil que é quase impossível cantá-la.
Muitos rapazes que eram alvo da
castração eram crianças órfãs ou abandonadas. Algumas famílias pobres,
incapazes de criar a sua prole numerosa, entregavam um filho para ser castrado.
Em Nápoles, recebiam a sua instrução em conservatórios pertencentes à Igreja,
onde lecionavam músicos de renome. Algumas fontes referem que muitas barbearias
napolitanas tinham à entrada um dístico com a indicação "Qui si castrano
ragazzi" (Aqui castram-se rapazes).
Em 1870, a prática de castração
destinada a este fim foi proibida em Itália, o último país onde ainda era
efetuada. Em 1902, o papa Leão XIII proibiu definitivamente a utilização de castrati
nos coros das igrejas. O último castrado a abandonar o coro da Capela Sistina
foi Alessandro Moreschi, em 1913. Na segunda metade do século XVIII, a chegada
do verismo na ópera fez com que a popularidade dos castrati entrasse em
declínio. Por alguns anos, ainda existiram desses cantores na Itália. Com o
tempo, porém, esses papéis foram transferidos aos contra tenores e, algumas
vezes, às sopranos.
FÁBRICA DE VOZES
A Igreja Católica não queria perder o
som de vozes angelicais, assexuadas, porém potentes. Assim, retornou-se uma
prática comum na Antiguidade. E o mal, que soava grave demais aos ouvidos
clericais, foi cortado pela raiz. Antes da puberdade, os rapazes de canto firme
perdiam suas glândulas generativas em um procedimento doloroso e, por falta de
hormônios, ficavam com suas vozes infantis de soprano ou de contralto. Tudo
pelo “louvor a Deus”, expressão com que o papa Clemente VIII sancionou em 1592
a brutal intervenção.
Assim os eunucos tinham vozes de
mulheres e pulmões de homens. Com poderosos pulmões e pomos-de-Adão infantis,
eles tinham cachê e prestígios ilimitados. Muitos pais não conseguiam resistir
à tentação do Vaticano e vendiam seus filhos a conservatórios de eunucos.
Nessas fábricas de vozes, os moços castrados treinavam sob um regime militar de
no mínimo sete anos, os tons corretos, os altos tons. Dos milhares de rapazes
que eram castrados anualmente nos séculos XVI e XVII na Itália, mais de 60%
morriam em conseqüência de operação, realizada com instrumentos muito
primitivos.
Os que conseguiram sobreviver à delicada
intervenção ficaram surdos, mudos ou paralisados – as feridas ensangüentadas
não eram desinfetadas, mas sim queimadas ou tratadas com cinzas. Somente 10%
dos mutilados revelavam-se suficientemente bons para serem aceitos como
solistas nos renomados elencos. Cinco em cada cem castrados conseguiram chegar
à efeminada elite. Alessandro Moreschi, o último dos sacrificados em nome do
louvor a Deus, morreu, em 1922, aos 63 anos, e pôs fim a um capítulo obscuro da
história da música. (Texto publicado neste blog no dia 19 de maio de 2008)
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