A pálida virgem quase à morte dos
românticos, a destruidora de corações dos realistas e a louca histérica dos
médicos fazem parte da mitologia da feminilidade no século 19. Vivendo em
mundos quase que completamente separados, homens e mulheres ainda guardavam os
eternos segredos que fascinavam o sexo oposto. A obsessão que o século da
rainha Vitória tinha pelas mulheres era real e não se restringia apenas aos
livros e quadros, mas se espalhava pelas ruas em cartazes de propaganda, peças
de teatro popular e crônicas de jornal.
No mundo desses homens que viviam
trancados nos gabinetes das fábricas, não era permitida a entrada da mulher,
que, em casa, ostentava jóias e bebês, ou, no bordel, tomava champanhe quente.
E essa separação teve um preço: para todo lado que eles olhavam viam mulheres.
Estátuas nuas perfilavam pelas ruas e museus, os nomes femininos estavam
presentes na representação da Justiça, da Ciência, da Eletricidade, da
Indústria, da Ferrovia, e também a luxúria, a castidade, a verdade e a cultura.
O inconsciente coletivo de 1900
confundia a curva da arte com a curva dos quadris. E todas as penas descreviam
suas heroínas fortes, da musa de Charles Baudelaire à serenidade burguesa
prestes a explodir de Madame de Renal, de Stendhal. Não é à toa que um médico
vienense, Sigmund Freud, começou a ver sérios problemas de natureza sexual nas
mentes de seus pacientes. Assim, a mulher povoou as páginas da literatura em
fins do século 19 como castradora, vampira, fatal. Cleópatra, Helena, Dalila e
muitas outras mulheres que se destacaram na história, a preferida como tema
para os artistas era Salomé. A assassina bíblica mereceu atenção especial por
parte de pintores e escritores. A dança fatal de Salomé inspirou versos
encantadores fatais de Charles Baudelaire, Émile Zola e Oscar Wilde. Ela era a
mulher fatal e ingênua, ao mesmo tempo virgem e prostituta. Impossível resistir
a tanto apelo e, frágeis, os homens se entregavam aos caprichos.
Foi através da literatura folhetinesca e
do cinema que a mulher fatal (irresistível) tomou impulso. Ela
é forte,
dominadora e habilmente induz o homem a fazer o que deseja. A Bíblia é pródiga
em mulheres fatais. Exemplos? Dalila que encarna a traição ao vender-se aos
inimigos de Sansão. Ela descobriu no leito que os cabelos de Sansão guardam sua
potência e, após o amor ela lhe corta a cabeleira. Salomé com sua dança sensual
pede a cabeça do profeta João Baptista. No império romano, Messalina convenceu
o marido, imperador Cláudio a ordenar o assassinado do senador Apio Silano. A
rainha do Egito, Cleópatra conquistou Júlio César e Marco Antônio.
Na literatura elas foram mais que
sedutoras. Carmen por exemplo surgiu como personagem de uma novela de Prosper
Mérimée, em 1852 e depois se tornou ópera, por obra de Bizet. Mais tarde foi
adaptada para o cinema e balé. Essa cigana seduz o cabo José, faz dele um
bandido e depois o trai com um toureiro. Haja chifre!. Wladimir Nabokov criou a
ninfeta Lolita, a jovem atraente para a desgraça dos mais velhos. Tem ainda as
noites intermináveis de Sherazade, a escolhida do rei para lhe entreter
contando histórias. O rei ouve todas as noites e, se não for de seu agrado, faz
com que a narradora morra. Sherazade torna os contos atraentes e encadeados
para que o rei desista da idéia de sacrificá-la no dia seguinte. Assim ela narrava
a trama das mil e uma noites carregadas de aventuras e surpresas. Quem lembra
da exótica dançarina Mata Hari (olho da madrugada), a cortesã mais bem paga da
Europa que virou espiã? Era fatal!
As mulheres nas peças de Shakespeare são
possessivas. Em Macbeth, por exemplo, Lady Macbeth domina e reina induzindo o
frágil esposo aos piores crimes. Em O Mercador de Veneza a mulher travestida de
advogado é a mais hábil, inteligente e perfeita defensora de Antônio e a cruel
acusadora de Shylock. Titus sofre na mão da perversa Tamora. Lear vai aprender
que não se divide herança em vida para filhas que parecem amorosas e nem se
deserda a que o ama, Cordélia.
Décadas de transformações sociais,
históricas e econômicas possibilitaram a mulher ocupar novos lugares na cena
social, ter acesso ao mercado de trabalho, apropriar-se de seu corpo e de sua
sexualidade, aproximando-o de seu desejo. O acesso das mulheres à vida
universitária, fruto de muitas lutas dos movimentos feministas, faz com que
hoje, embora minoritárias, as mulheres políticas, cientistas, sejam
respeitadas. Nas áreas das letras e das artes, as mulheres sempre estiveram
presentes, embora discriminadas. Tocar piano ou pintar era como bordar: algo
para as mulheres se entreterem ou entreter a família. O direito ao
reconhecimento público e à profissionalização foi conquistado com muita luta.
Apesar dos avanços, as mulheres ainda são minorias e exceção.
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