Mas,
ao contrário dos grandes
mitos emanados das velhas
religiões de culturas
antigas, o públicoleitor sabia perfeitamente
que seus admirados
personagens eram fictícios,
produto da tinta-da-china
em cima do papel
e não reais. Porém,
tal condição fabulosa não
impediu, nem impede,
a adesão solidária
e, inclusive, a veneração
fervorosa de público
a seu herói favorito.
Este fenômeno psicológico,
que leva a atribuir
uma personalidade quase
real a um personagem
desenhado, apesar de
sua condição fictícia, reveste
um enorme interesse
social e se baseia
nos mecanismos de identificação
e da projeção do
“eu” do leitor sobre
os personagens da
narrativa.
De
Joyce a Picasso, passando
por Felline, Resnais e
tantos outros prestaram
atenção nos quadrinhos
porque neles viu uma
reação autenticamente imaginativa
contra as formas oficiais.
Esse é um elemento
capital e valorativo
no debate que hoje
permanece aberto e
vivo acerca das funções
e valores da cultura
de massas. Conforme
escreve o crítico
e estudioso Francis Lacassin:
“Que as tiras desenhadas
cultivem o fabuloso,
o irreal e o
impossível, me parece
conforme à sua
vocação natural: serem
o luar da realidade”.
(LACASSIN, apud GUBERN,
1979, p.23).
No
Primeiro Salão Internacional
de HQ, na cidade
italiana de Bordighera
(1965), a estudiosa
ÉvelyneSullerot questionou:
“Será que nos encontraremos
perante um fenômeno
de subcultura, cuja vocação
não permitirá ultrapassar
esta fase? Ou, pelo
contrário, não consistirá
o fenômeno uma reserva
natural de matérias,
temas e processos,
para uma futura cultura
artística a que
eu chamaria simplesmente
uma antecâmara da cultura?”
(SULLEROT, apud MARNY,
1979, p.275).
Para
apoiar esta tese, a
autora evidencia o fato
de muitos movimentos
literários, artísticos
e musicais que apareceram
como novidade se inspirarem
bastante nas manifestações
mais vulgares da subcultura
da época, então bastante
popular. O romantismo
foi precedido pelo gosto
popular pelos melodramas
e romances de cordel;
o surrealismo nasceu
graças, entre outras coisas,
a um olhar atento
dos objetos banais e
o burlesco popular; a
música moderna recebeu uma
nova inspiração do jazz,
a pop art começou
a nascer das histórias
em quadrinhos.
Os
atributos de classificação
entre popular e erudito
alteram-se, inúmeras
vezes, no decorrer do
tempo. As qualificações
para cada uma delas
não necessariamente se
mantêm. Shakespeare, por
exemplo, já foi
concebido, em sua
época, como autor popular.
Rabelais, considerado
por Mikhail Bakhtin (1987, p.2)
– ao lado de Dante,
Boccaccio, Shakespeare
e Cervantes – um dos
criadores da nova
literatura europeia, foi
recusado pelo seu
caráter popular
e pelo aspecto não
literário de sua
obra. Hoje, todos são
tidos como representantes
inequívocos da literatura
consagrada (BORELLI, 1996, p.
25).
O
valor de uma obra
de arte reside, em
parte, na capacidade
que ela possui de
criar personagenssólidos,
heróis e heroínas que
se transformem em
“tipos”, em símbolos representativos
de certa época, ou
então em cristalização
de uma paixão da
alma humana. E os
quadrinhos, ao longo
de sua trajetória,
criou uma galeria de
“tipos” universais, tanto
no campo da aventura
realista, como no
da ficção científica,
e sobretudo, no domínio
do humor. A imprensa,
o cinema, a HQ
e os folhetins
de televisão são os
reservatórios da mitologia
da sociedade atual. Num
mundo onde a realidade
encontra-se exposta,
sem limites, em tempo
real, por meio das
mídias digitais, a HQ
é uma dos únicos
meios de expressões
que recupera o sonho.
Uma
vez que o elemento
onírico está se
perdendo da concepção
dos bens culturais,
num mundo onde as
características realistas
da informação e da
comunicação são cada
vez mais reforçadas,
em detrimento do direito
de sonhar, inerente
ao ser humano. E
até os efeitos especiais,
que já foram voltados
para a criação de
ilusões e fantasias,
atualmente recriam hiper-realidades,
onde o efeito imagético
e sonoro equivale aos
eventos e leis
naturais, mesmo nos
territórios ficcionais
mais fantásticos. É
no conteúdo da linguagem
das HQs que o
elemento afetivo demonstra
a força da fantasia
no despertar da imaginação
e do gosto pela
leitura infantil, que
prossegue ao longo
de toda a vida.
Referências:
BORELLI,
Silvia Helena Simões. Ação,
suspense, emoção.
Literatura e cultura
de massa
no Brasil.
São Paulo: EDUC; Estação
Liberdade, 1996.
CANCLINI,
Nestor Garcia. Culturas
Híbridas: estratégias
para entrar
e sair
da modernidade.
São Paulo: Edusp. 1997.
EISNER,
Will. Narrativas Gráficas.
2ª ed. São Paulo:
Devir, 2008.
FRANCO,
Edgar Silveira. HQTrônicas:
do suporte
papel à rede
Internet. São Paulo:
Annablube; Fapesp, 2004.
FOUCAULT,
Michel. Microfísica do
poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1979.
GOIDA.
Enciclopédia dos
quadrinhos. Porto Alegre:
L&PM, 1990.
GUBERN,
Román. Literatura da
Imagem. Rio de
Janeiro, Salvat, 1979.
GUYOT,
Didier Quella. A
história em
quadrinhos. São Paulo:
Edições Loyola, 1994.
MORIN,
Edgar. Cultura de
massas no
século XX. Rio
de Janeiro: Editora Forense,
2009.
MOYA,
Álvaro de. Shazam!
São Paulo: Perspectiva,
1970.
MOYA,
Álvaro de. História
das histórias
em quadrinhos,
2 ed. São Paulo: Brasiliense,
1993.
MOYA,
Álvaro de. Vapt-Vupt.
São Paulo: Clemente
e Gramani Editora, 2003.
ORTIZ
Renato. Mundialização e
Cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994
RAMOS,
J.M.O. Televisão,
publicidade e cultura
de massa.
Petrópolis: Vozes, 1995.
RIANI,
Camilo. Linguagem e
cartum... ta
rindo de
que? Um
mergulho nos
salões de
humor de
Piracicaba. Piracicaba:
UNIMEP, 2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário