Com a sensualidade liberada industrialmente pela minissaia, e o sexo cantado em prosa e verso em toda sua voltagem, o que se observa nos dias de hoje como resultado é a anestesia do excesso. Tornou-se tão corriqueiro expor o corpo como mercadoria que o sexo acabou sendo incorporado à paisagem cotidiana. Atualmente, qualquer música fala do assunto obedecendo em geral a um mecanismo na adoção de certas palavras-clichês, imagens-chavões. E assim, ao cantar, falamos um certo conjunto de palavras e adotamos certas atitudes que aprendemos ser as adequadas a uma certa imagem que queremos “vender” de nós mesmo. Acabamos vivendo como um teatro, do qual somos meros atores. Nesse plano a imagem e/ou a palavra cantada acabou ganhando preponderância sobre a experiência concreta vivida. O sexo perdeu seu caráter enigmático, denso. Foi reduzido a uma experiência corporal, tipo um exercício de aeróbica. Sendo reduzido a uma interpretação infantilizada (com letras sem densidade ou conteúdo), o que vale é o desempenho, a performance do artista, o palco. Ninguém está interessado em refletir o que se canta. Não há qualquer densidade, nenhum drama, conflito, nada que exija do ser algo mais profundo que a imagem por si só. Resultado: a massa repete mecanicamente os gestos que vê nos programas de tevê e/ou shows que os “artistas” comandam.
Reproduzimos os comportamentos sexuais que vemos sob a forma de clichês na música. Trata-se, aqui, de um outro extremo em relação à tradição proibitiva da Igreja Católica. A Igreja só abençoava a atividade sexual quando se tratasse de procriação, em obediência à orientação bíblica “crescei e multiplicai-vos”. Sob influência do cristianismo, o sexo permaneceu como algo oculto, proibido. A experiência sexual era quase impossível para a maioria das pessoas que viviam divididas entre a santidade e o pecado. Hoje, o sexo foi vulgarizado, tornou-se algo banal. Há sexo em excesso, há sexo em tudo. Mas é um sexo que se esgota na aparência. O desejo de uma relação mais densa é cada vez mais descartado, quase que considerado um sintoma mórbido e neurótico de uma personalidade complicada.
Georg Simmel, um pensador e crítico do pós-modernismo, observa que quanto mais “nervosa” é uma época (isto é, quanto mais instáveis os parâmetros culturais, estéticos e políticos), mais rapidamente mudam as suas modas, porque tudo aquilo que surge como “novidade” torna-se velho em seguida, o que cria a necessidade de mais novidades e assim por diante. Outro pensador, Walter Benjamin, dizia que a moda é uma tentativa de prolongar por mais tempo certos sentimentos e afetos que tendem a desaparecer na vida agitada das metrópoles. Benjamin disse isso nos anos 30. Agora, com certeza, as relações afetivas são muito mais efêmeras, rápidas, transitórias. Mais do que nunca, a moda tornou-se uma tentativa de reter, ao menos por algum tempo, aquilo que a corrente da vida pós moderna leva num fluxo vertiginoso e incessante.
Atento observador do mundo, o psicanalista e psiquiatra francês Charles Melman ao participar, em Salvador, do projeto Fronteiras Braskem do Pensamento, disse que a apatia da contemporaneidade é parte de um longo processo do ser humano que busca, por um sentimento quase atávico, a destruição. “Podemos dizer que o trabalho dos artistas sempre foi incomodar o conformismo social, na esperança de provocar uma melhor relação entre os homens e de nos convidar a viver diferente. Esta é uma constante do trabalho artístico. Mas hoje – e isto é um fenômeno novo – temos a impressão de uma renúncia a esta tradição dos artistas. Uma renúncia de uma resignação. A constatação de que os artistas não podem mais nada. Tentar compreender o por que pode ser interessante”.
Para ele, o que está acontecendo dentro da Nova Economia Psíquica (a propos de la Nouvelle Economie Psychique): “O que é privilegiado hoje em dia não é a manutenção e o respeito à vida, mas a busca do prazer máximo, mesmo que ele coloque a vida em perigo, ou a suprima”. Segundo o pensador francês, a sociedade de consumo está matando o pensamento: “Antes, nós nos fazíamos reconhecer pelo outro por nossas qualidades morais. Hoje, nos fazemos reconhecer pelo poder de consumo que temos. É uma mudança que tem certas consequências, como se pode ver. (...) O que faz a economia caminhar são os bens que são, sobretudo, os elementos de prestígio e de promoção social. E para adquirir esses bens de promoção social, nós preferimos fechar os olhos para o fato de que estamos destruindo o planeta”.
Não é só o ritmo que vai instituir uma escuta do pagode, mas sua forma de cantar, as expressões locais que utiliza, os elementos culturais populares e, principalmente, o sotaque, tudo vai significar para aproximar as pessoas, funciona como um dos primeiros índices de identificação e também de estereotipia. O sotaque permite identificar o cantor como um som familiar por estar associado, quase sempre, a um conhecimento prévio que permite enquadrar o falante em conceitos morais, em valores, num regime de escuta, em que são as pessoas que falam, mas a fala que diz a pessoa. A música pagodeira, ao assumir este sotaque, provoca uma alteração substancial no regime de escuta em nossa sociedade.
Familiarizado com a prática musical mais “muscular” que “auditiva”, ou seja, eles não estavam acostumados a parar para ouvir música, mas para fazer ou dançar música. Tocar viola, sanfona, pandeiro, zabumba, instrumentos de bandas marciais, em uma prática generalizada, abandonada ou restringida pelo contato com a sociedade urbano-industrial, cuja música se torna cada vez mais recebida que praticada.
Como bem observou o pensador francês Roland (1915/1980) Barthes (“O Corpo da música”, em O Óbvio e o Obtuso, pp.217) a disciplina do corpo para o trabalho industrial passa pela disciplina do ouvido, pelo desenvolvimento do corpo da prática musical, privilégio cada vez maior de um ouvido receptivo, passivo, para as mensagens produzidas por outrem. O corpo que cantava, dançava, tocava, vai ser reduzido a um corpo que escuta e obedece.
O sucesso do pagode foi fruto, por um lado, de um código de gosto que valorizava as músicas dançantes, as de natureza lúdica e, por outra, atendia ao consumo crescente de signos regionais reforçando seus valores. Essa música traz à tona a experiência de um povo pobre, que busca afirmar o que considera “uma cultura marginalizada” de um grupo social e regional que resiste à destruição completa de seus territórios tradicionais, mas que para isto tem de consultar novos territórios que, imaginariamente, continuam os anteriores. O sucesso dessas músicas entre a população solidifica uma identidade regional entre indivíduos que são igualmente marcados nas cidades. Ao se perceberem como iguais, como “falando o mesmo sotaque”, tendo os mesmos gostos, costumes e valores.
O filósofo Theodor E. Adorno (1903/1969) tornou-se conhecido pelos ensaios voltados à sociologia da música, em especial, pela cisão definitiva que propõe entre “música séria” e “música de entretenimento”. Para Adorno, toda música reduzida à forma mercadoria induz a uma decadência generalizada do gosto e à retração da consciência individual. Para o filósofo, a teia das relações das quais a música seria apenas mais uma vítima, desobriga o sujeito da reflexão crítica e da efetiva emancipação que a arte poderia lhe trazer. O que adorno percebia de mais problemático era o bloqueio à reflexão artística que esta sujeição e este “perder-se” lhe impõem. Limitar-se apenas ao prazer sensível da música, se a esteira de uma busca romântica e patológica de um belo, seria diminuir o verdadeiro alcance da arte sonora.
Em “Idéias para a Sociologia da Música”, Adorno criticava essa redução do universo histórico-musical a um setor organizado de lazer na sociedade de consumo. A música de entretenimento, em sua dimensão publicitária e ideológica, ainda serve de passatempo dócil e útil para domesticar os impulsos das massas, ao qual um público cativo se curva em apelo soberbamente religioso.
A música séria deve, para Adorno, ir além do prazer sensível e da diversão utilitária, deve colocar-se como linguagem crítica capaz de “pensar” a sociedade, e de pensá-la através da racionalidade que lhe é peculiar. Pois é somente assim, no desenvolvimento de suas formas internas, que a música consegue afinal dizer (não só em relação ao sentimento) aquilo que a palavra e o conceito não poderiam.
A sociedade de consumo é problematizada pela simulação e o espetáculo, fazendo um zapping de signos da sociedade do espetáculo, onde a realidade se esvai na sua representação imagética. O real torna-se apêndice de seus simulacros. Essa é a sociedade da reificação dos homens e das coisas, criando o fetichismo com relação aos objetos, ao consumo trivial e banalizado, acarretando assim um pseudo-gozo. A sociedade do espetáculo aniquila, pelo poder técnico-midiático, a realidade. Trata-se, portanto, de uma sociedade da cópia, do simulacro, da representação (falsa) da realidade.
A tecnologia (formato musical MP3, por exemplo) é, sem dúvida, nesta perspectiva, uma ferramenta sutil de controle das massas, de racionalidade tecnocrática e de homogeneização social. A geração da década de 80 viu surgir o walkman, a MTV, os jogos eletrônicos, os videotextos. Na década de 90 a geração já estava ativa, acostumada ao multimídia, à realidade virtual e às redes planetárias telemáticas. A geração hoje não é mais literária, individual e racionalista, como a cultura enciclopédica dos livros. Ela é uma nova geração eletrônica, tribal, simultânea e é seu próprio simulacro.
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