20 julho 2022

Paixão pela palavra (3)

 

A relação de poder à base do fenômeno da prostituição se evidencia em “Folhetim” (1977/8). Focaliza a figura da prostituta que oferece os seus encantos – “Se acaso me quiseres/sou dessas mulheres/que só dizem sim...” feita para uma personagem da “Ópera do Malandro” que inclui também “O Meu Amor” e “Geni e o Zepelim”. A mulher vai manipular o homem, ludibriando-o com meras verdades, e finalmente descartando-o: “E eu te farei as vontades/Direi meias verdades/Sempre à meia-luz/E te farei, vaidoso, supor/Que és o maior e que me possuis//Mas na manhã seguinte/Não conta até vinte/Te afasta de mim/Pois já não vales nada/És página virada/Descartada do meu folhetim”.

 


Mas a festa dionisíaca, a grande canção visionária e utópica, em que surge, com força e intensidade, o Eros do povo, uma explosão em que o erótico e o político convergem num mesmo movimento liberador cósmico está nesta canção: “O que será que será/ Que vive nas idéias desses amantes/ Que cantam os poetas mais delirantes/ Que juram os profetas embriagados/ Está na romaria dos mutilados/ Está na fantasia dos infelizes/ Está no dia-a-dia das meretrizes/ No plano dos bandidos, dos desvalidos/ Em todos os sentidos/Será que será...”

 

Chico Buarque capta o recado das vozes que sussurram na noite de uma realidade desconhecida, nas alcovas, no breu das tocas, nos botecos, nos mercados: as duas canções que recebem o nome de O Que Será (À Flor da Pele e À Flor da Terra) sugerem a convergência do erótico e do político, subordinados a um só princípio. O que será, que não tem descanso nem cansaço, esse inominável; que se recorta no avesso do princípio de realidade (limite, sentido, certeza, tamanho, governo, censura, decência, vergonha), realidade, que fica pairando como uma fantasmagoria castradora sobre a expansão da energia, ou, como chamá-lo?, libido, desejo, vontade de contato, amor. A poesia/música de Chico, esse artesão habilíssimo, capta a entranha sensível, e por isso é tão fina para o erótico, o social e o feminino.

 


A letra trata daqueles que estão fora da esfera do poder, excluídos da vida econômica. Tanto os amantes, poetas, profetas (seres que habitam o mundo da fantasia) como os marginais. Excluída da esfera da produção, alijada do mundo do poder: eis o lugar social da mulher na sociedade patriarcal:

 

“O que não têm decência, nem nunca terá

O que não tem censura, nem nunca terá

 


O que não faz sentido

O que será que será

Que todos os avisos não vão evitar

Porque todos os risos vão desafiar

Porque todos os sinos irão repicar

Porque todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos irão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno, que nunca foi lá

Olhando aquele inferno vai abençoar

 

O que não têm governo, nem nunca terá

O que não tem vergonha, nem nunca terá

O que não tem juízo” (O Que Será – À Flor da Terra – 1976).

 


“Isso” de que ele fala e que canta, nunca é nomeado. Não tem nome, não tem vergonha, “o que será que será?”. A existência de proibições e/ou punições a algo que seria puramente natural torna-se aquilo de que se deve ter vergonha. Aquele “inferno” que é preciso coibir, refrear, ocultar, disfarçar. Como escreveu o escritor Bataille, o sexo, nos humanos, é erotismo e este é impossível sem as interdições e as transgressões.

Nenhum comentário: