05 janeiro 2021

Autoritarismo brasileiro, uma breve história de cinco séculos (02)

MANDONISMO

 

A historiadora Lilia Moritz Schwarcz ao investigar os subterrâneos da nossa história, ajuda a entender porque fomos e continuamos a ser uma nação muito mais excludente que inclusiva.

 

Nosso primeiro historiador, o franciscano Frei Vicente do Salvador escreveu em seu livro História do Brasil (1630): “Nenhum homem nesta terra é república, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. E a nossa República ainda permanece inconclusa; cada um pensando, em primeiro lugar, nos seus interesses privados e só depois, bem depois, naqueles públicos e que dizem respeito à nossa res (`assunto`) público.”.

 


O mandonismo também tem suas raízes no século XVI, no próprio formato administrativo do sistema colonial. Sem condições de controlar o território colonial, a metrópole portuguesa optou por uma forma de governação baseada na delegação de poderes a um número restrito de colonos que se transformaram em senhores de enormes latifúndios. Nesse contexto, a autoridade desses poucos era quase irrestrita em razão da (quase) ausência da esfera pública. É neste momento que se constrói uma nova ‘aristocracia meritória’ — por meio da qual títulos eram providos pela coroa portuguesa como uma recompensa pelos serviços prestados. Desenvolve-se, assim, a sociedade patriarcal brasileira, tendo como centro a família (na verdade, o ‘senhor’) como base, inclusive simbólica, de toda a organização social. Paulatinamente, isto consolidou a influência do senhor em todas as esferas sociais, de comércio a política. O desenvolvimento do “voto de cabresto” e do “curral eleitoral” foram reflexo direto deste modelo, consolidadas no âmbito do coronelismo, e que se perpetuaram ao longo dos séculos seguintes, mesmo que em formatos alternativos. Estes mecanismos explicam em grande medida a perpetuação de famílias políticas ‘tradicionais’ que perduram no Congresso há gerações, quase que de forma hereditária.

 

Herdamos essa linguagem do mandonismo do passado, da época do domínio exclusivo de grande profundidade rural, mas que vem encontrando renovada sobrevida nesta nossa era dos afetos digitais, igualmente autoritários. Basta observar o político populista digital que preza ódio e a intolerância.

 

PATRIMONIALISMO

 

Tá difícil construir modelos compartilhados de zelo pelo bem comum. Nos cinco séculos de histórias criamos várias formas de compadrio, moeda de troca, recurso a pistolões, hábito de furar fila, leves vantagem ou utilizar intermediários. Tudo isso se enraizou nessa terra o uso abusivo do Estado para fins privado. Persiste no Brasil um sério déficit republicano enquanto práticas patrimoniais e clientelistas continuam a imperar no interior de nosso sistema político e no coração de nossas instituições públicas. Ainda permanece a relação viciada que se estabelece entre a sociedade e o Estado – ou seja o Estado é bem pessoal, “patrimônio” de quem detem o poder. A prática atravessa diferentes classes.

 

A corte portuguesa desembarcou com toda a máquina administrativa da metrópole. O número de funcionários aumentava sendo que muitos cargos foram sendo criados para atender amigos próximos do rei. Muitos deles eram parasitas do governo. A máquina inchava com novas despesas. A única saída era criar impostos para que o Brasil inteiro pagasse a elevada conta. Crescia o patrimonialismo do Estado, ligado aos novos imigrados lusitanos.

 


Estas dinâmicas continuaram, mesmo que com algumas alterações nos períodos seguintes, após a independência e mesmo após a instauração da república, não obstante a criação de instituições mais autônomas. Estas dinâmicas são fomentadas pelo mandonismo e se associam diretamente com o quarto grande problema, a corrupção.

 

O legado do poder privado sobrevive dentro da máquina governamental. A “bancada de parentes” continua crescendo no Congresso Nacional. Na Câmera, em 2014, foram eleitos 113 deputados com sobrenomes oligárquicos, sendo parentes de politicos estabelecidos. Nas eleições de 2018, o numero de parlamentares com vínculos  familiares aumentou para 172. “A contaminação de espaços públicos e privado é uma herança pesada de nossa história, mas também um registro do presente” (pag.87).

 

A corrupção que hoje assusta a política nacional faz parte, em maior ou menor escala, do cotidiano do país desde os tempos do Brasil colônia. Já a desigualdade se reflete em várias esferas que se reforçam mutuamente (de renda, de oportunidades, racial, de gênero, regional, geracional, etc.). Um dos problemas relacionados a este cenário refere-se ao papel da educação e do analfabetismo. Como demonstra Schwarcz, revisitando a história, a “educação nunca foi um direito de todos neste país de proporções continentais, passado escravocrata e estruturada concentração de renda” (p. 133).

 


Para a historiadora, o brasileiro é, antes de tudo, um autoritário. Depois de séculos escondendo-se por trás da ideia de povo aberto, diverso, tolerante, pacífico e acolhedor — o conceito de "homem cordial", cunhado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em 1936, em Raízes do Brasil—, ele tirou a máscara da cordialidade e revelou-se abertamente intolerante.

 

É importante relembrar o passado para questionar o presente. Esta análise nos permite, de um lado, questionar alguns mitos do imaginário brasileiro e, de outro refletir de forma crítica sobre algumas fórmulas populistas e simplistas que têm ganhado espaço no discurso público, em especial relacionadas a segurança, paz e desenvolvimento. A obra de Lilia Scharcz é uma viagem urgente e esclarecedora pelos subterrâneos da história brasileira.

 

Há uma grande falta de memória histórica brasileira. Os problemas sociais vividos não são novos. A recente mudança de governo no Brasil, seguindo o maior escândalo de corrupção da história do Brasil, a retomada do debate sobre o estatuto do desarmamento e sua possível revogação, as inúmeras medidas para flexibilizar a regulação do porte e utilização de armas, apresentadas, inclusive, como forma de aumentar a segurança, a pandemia, são alguns dos fenômenos que podem ser compreendidos a partir da amnésia histórica coletiva sobre o país. 

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