Há 110 anos nascia,
“ele, o tal”, Cuíca de Santo Amaro que se tornou célebre por vender seus
panfletos de cordel, preenchidos não com novelas, mas com os rumores da cidade
– segredos de alcova e trapaças de ricos marreteiros nunca lhe escapam. Seus
métodos de atuação, aos poucos descortinados pela história, incluíam a
“canalhice modesta”, como classificou o jornalista Paolo Marconi num estudo
sobre Cuíca. Ao sair às ruas com um novo escândalo na manga, o cordelista
exultava em dar nomes: quem não quisesse ser exposto em praça, que o chamasse
para uma conversa. Vai pagar? “Só não escrevo contra Deus. No mais, o que vier,
eu traço. Adoro escrever contra padres e o Diabo”, dizia. A mesma ética da
imprensa: de Chateaubriand, de Hearst, Murdock aos atuais sites de muitas
empresas baianas.
Entre as décadas de 40
e 60 um cronista do cotidiano se destacava em Salvador. Mestre de trovador e
repórter, Cuíca de Santo Amaro se celebrizou como um dos personagens mais
importantes da história recente da cultura baiana. Seus versos virulentos
assustavam poderosos e gente comum, e não havia segredo guardado a sete chaves
que escapasse do seu faro para escândalo, que tornava público na cidade através
de cordéis.
Amado por uns, odiado
por outros, ele vestia um fraque bem passado, flor na lapela e chapéu-coco.
Dessa forma ele desfilava pelas principais ruas de Salvador declamando seus
versos de poeta trovador. Apesar de não ter estudado e não estar entre os
melhores versificadores da literatura de cordel, Cuíca era a síntese do
trovador-repórter popular. Ele forneceu um relato picante e interessante do seu
tempo, um retrato folclórico-popular da vida baiana, através de centenas de
folhetos, impressos semanalmente durante quase 25 anos. Muitos dos seus cordéis
fazem denúncia contra abusos praticados contra o povo. Criticava não só
políticos que julgava sem caráter, mas donos de estabelecimentos que cobravam,
preços altos e repartições que forneciam serviços públicos de má qualidade.
Participou do filme “A
Grande Feira”, dirigido por Roberto Pires, representando ele mesmo, e inspirou
o personagem Dedé Cospe Rima de “O Pagador de Promessas”, dirigido por Anselmo
Duarte e baseado na obra homônima de Dias Gomes. Inspirou personagens do escritor
Jorge Amado (A morte de Quincas Berro D´Água, Tereza Batista Cansada de Guerra
e Pastores da Noite). Tudo reflexo do reconhecimento que conquistou, na vida do
povo de sua terra.
Com base em um
escândalo que explodiu em Salvador em 1956 Cuíca anunciou em cordel: “A Bahia
que era,/orgulho dos brasileiros,/antigamente gabava,/por todos os
estrangeiros,/transformou-se por encanto,/em antro de marreteiros./Marreteiros
granfinotes,/os quais vivem engravatados,/na arte da roubalheira,/já são eles
inveterados,/mas não pela polícia,/dificilmente fechados./Porque muitas
vezes,/são homens de posição,/que dão bronca no comércio,/depois ganham na
questão,/ainda chamam a polícia,/para a sua proteção”.
Quando os jornais
esqueciam um escândalo Cuíca entrava em ação. E uma das suas formas de atuação
era que ele recebia dinheiro para elogiar, recebiam daqueles que queriam ser
poupados (não sofrer na língua do poeta), dos que queriam desmoralizar alguém
ou dos leitores que compravam suas revistinhas para saber da vida alheia e dos
últimos acontecimentos. Pescadores que chegavam nos saveiros à Rampa do
Mercado, baianas, marinheiros, todos ficavam sabendo do que acontecia na
cidade, no país e no mundo através dos versos de Cuíca.
Ele contava com
detalhes o último crime sensacional, o aumento do preço da carne seca e da
farinha, o incidente dos bêbados e a última façanha dos cangaceiros. Ele era
bem informado dos acontecimentos, sobretudo aqueles abafados pela polícia,
jornais e rádios. Cuíca contava com a ajuda de muitas pessoas que o procurava
para fazer denúncias. Cuíca se considerava um defensor e porta-voz dos mais
pobres e investia com toda rudeza contra os responsáveis pelos péssimos
serviços prestados ao povo de Salvador, denunciado negociatas, cambalhachos,
manobras altistas e câmbio negro de produtos alimentícios.
Cuíca nasceu em
Salvador em 19 de março de 1907. Ele ia muito a cidade de Santo Amaro da Purificação
namorar e tocar violão. Foi lá, inclusive, que conheceu a mulher, Maria do
Carmo Sampaio. A intimidade com os versos começou com a profissão de
propagandista. Ele anunciava em versos as mais diferentes atividades comerciais
da cidade. Vestido de cartola e fraque, gritava a quem passava pela Baixa dos
Sapateiros uma grande liquidação ou um novo filme na cidade. Dessa forma, ele
aprendeu com maestria a chamar a atenção do público.
O trovador morreu no
dia 23 de janeiro de 1964, aos 56 anos. Por mais de 20 anos foi o cronista de
Salvador, autor de mais de 400 folhetos de cordel, até hoje ele é um tipo
maldito, mas atual. Sua função social foi importante, mas ele teve suas
próprias regras éticas. Quem melhor difundiu sua função social foi Jorge Amado:
“Não pense o visitante que ele seja apenas um tipo de rua, figura popular e
risível. É bem mais que isso. É a voz do povo trabalhando que, não encontrando
ressonância nos poetas modernos, e tendo sede de poesia, cria seu bardo pobre e
semi-analfabeto. Os poetas estão nos bares inventando sonetos de rimas
milionárias ou quebrando a cabeça em ritmos novos para poemas exotéricos. Só
Cuíca de Santo Amaro canta para o povo pobre. Quando o forasteiro passar por
ele talvez a figura e a voz do trovador mereçam apenas um sorriso dos seus
lábios civilizados. Mas, que importa? O povo não sorri do poeta. Ri e sofre com
ele, combate e tem esperança!”.
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