17 agosto 2015

Árvore do Conhecimento (1)



A vida é um processo de conhecimento. Vivemos no mundo compartilhando com os outros seres o processo vital e somos sempre influenciados e modificados pelo que experienciamos. Eis o que Humberto Maturana e Francisco Varela no livro A Árvore do Conhecimento chamam de biologia da cognição. Sua proposta central é a de que o conhecimento é um fenômeno baseado em representações mentais que fazemos do mundo. A mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo conteria “informações” e nossa tarefa seria extraí-las dele por meio da cognição.

O representacionismo é um dos fundamentos da cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo, inclusive as Américas. A esse respeito, lembremos um dado histórico comentado por Hannah Arendt em relação aos bôeres, europeus em sua maioria descendentes de holandeses que iniciaram a colonização da África do Sul no século 17. O contato com os nativos sempre os chocava, diz Arendt. Para aqueles homens brancos, o que tornava os negros diferentes não era propriamente a cor da pele, mas o fato de que eles se comportavam como se fizessem parte da natureza. Não haviam, como os europeus, criado um âmbito humano separado do mundo natural.
 
Os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim através da interação. Eles aprendem vivendo e vivem aprendendo

Do ponto de vista dos bôeres, essa ligação tão íntima com o ambiente transformava os nativos em seres estranhos. Era como se eles não pertencessem à espécie humana. Por serem parte da natureza, eram vistos como mais um “recurso” a ser explorado. Por isso, era “justo” que fossem amplamente utilizados como produtores de energia mecânica no trabalho escravo, ou então simplesmente massacrados. Eis um exemplo do tipo de alteridade gerado pelo modelo mental fragmentador. A fragmentação traduz a separação sujeito-objeto, principal característica da concepção representacionista.

Se diante da diferença com o outro geralmente reagimos selando o valor, o significado de tal diferença, com o estigma de uma divergência cultural que revela uma incompatibilidade de fundo que não estamos dispostos a rever, nunca atingiremos uma convivência criativa e sempre estaremos generalizando o rancor, que se transforma num agressivo controle ou numa submissão hipócrita

Hoje, mais do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos convencidos de que somos
separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiência. Foi exatamente para mostrar que as coisas não são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore do Conhecimento. Eis a sua tese central: vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós. Ao contrário das tentativas anteriores de contestar pura e simplesmente o representacionismo, as ideias de Maturana e Varela têm nuanças que lhes proporcionam uma leveza e uma perspicácia que constituem a essência de sua originalidade.

Para eles, o mundo não é anterior à nossa experiência. Nossa trajetória de vida nos faz construir nosso conhecimento do mundo – mas este também constrói seu próprio conhecimento a nosso respeito. Mesmo que de imediato não o percebamos, somos sempre influenciados e modificados pelo que vemos e sentimos.

Criar o conhecimento, o entendimento que possibilita a convivência humana, é o maior, mais urgente, mais grandioso e mais difícil desafio com que se depara a humanidade atualmente.

A ideia de que o mundo é construído por nós, num processo incessante e interativo, é um convite à participação ativa nessa construção. Mais ainda, é um convite à assunção das responsabilidades que ela implica. Não se trata, porém, de uma escolha retórica, e sim do cumprimento de determinações que derivam da nossa própria condição de viventes. Maturana e Varela mostram que a ideia de que o mundo não é pré-dado, e que o construímos ao longo de nossa interação com ele, não é apenas teórica: apoia-se em evidências concretas. Várias delas estão expostas – com a frequente utilização de exemplos e relatos de experimentos – nas páginas do livro A Arvore do Conhecimento.

O centro da argumentação de Maturana e Varela é constituído por duas vertentes. A primeira, como vimos, sustenta que o conhecimento não se limita ao processamento de informações oriundas de um mundo anterior à experiência do observador, o qual se apropria dele para fragmentá-lo e explorá-lo. A segunda grande linha afirma que os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores – capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. A autonomia dos seres vivos é uma alternativa à posição representacionista. Por serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente informações e comandos vindos de fora. Não “funcionam” unicamente segundo instruções externas. Conclui-se, então, que se os considerarmos isoladamente eles são autônomos. Mas se os virmos em seu relacionamento com o meio, torna-se claro que dependem de recursos externos para viver. Desse modo, autonomia e dependência deixam de ser opostos inconciliáveis: uma complementa a outra. Uma constrói a outra e por ela é construída, numa dinâmica circular.




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