04 janeiro 2007

“Tudo está na palavra”, disse Neruda

Ler é estimulante. Tal como as pessoas, os livros podem ser intrigantes, melancólicos, assustadores, e por vezes, complicados. Os livros partilham sentimentos e pensamentos, feitios e interesses. Os livros colocam-nos em outros tempos, outros lugares, outras culturas. Os livros ajudam-nos a sonhar, fazem-nos pensar. "Um país se faz com homens e livros", dizia o escritor Monteiro Lobato. Talvez por isso, Castro Alves foi tão enfático ao proclamar no seu poema O livro e a América: "Oh bendito o que semeia/ livros, livros à mão cheia/ E manda o povo pensar! O livro caindo n`alma/ É germe - que faz a palma/ É chuva - que faz o mar".

O livro, segundo o dicionarista Antonio Houaiss é um instrumento por excelência da tradição – transmissão da posse e do conhecimento. Mas o que vemos hoje parece paradoxo: as crianças, no ensino primário, são introduzidas no mundo da televisão, do cinema, circo, teatro e até da internet, e depois no mundo dos livros. “Livro – disse o padre Antônio Vieira – é um mundo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive”. Muitas vezes o livro causa aversão aos alunos quando as primeiras leituras são obrigatórias.

Para incentivar o hábito de leitura é preciso que os pais tenham esse hábito, que os filhos convivam com o livro em sua própria casa. A falta de hábito de leitura significa que o jovem não domina as práticas da leitura e não entende o conteúdo de um texto. Há uma sutil diferença entre a informação (obtida por meio dos jornais, revistas, TV, rádio e Internet) e a formação baseada nos livros e nas salas de aula. Afinal, somos uma civilização escrita. “Somos instrumento fundador de humanidade, as línguas, em particular as grandes línguas de cultura, transitaram de um léxico máximo de 40 mil palavras no fim do século 18 para um léxico mínimo de 400 mil palavras nos meados do século XX”, disse Antonio Houaiss, demonstrando a imensa riqueza que guardamos em palavras.

“... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ...”

“Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram”.

O poeta Pablo Neruda (Confesso que Vivi – Memórias) discorre sobre as palavras e, por meio delas, apresenta os temas recorrentes em sua escrita: palavras do mar, do ar, da terra. Palavras táteis, olfativas, auditivas, visuais, palatáveis. Palavras líricas, épicas e dramáticas: palavras do opressor e do oprimido. Palavras iguais incrustadas de maneira diferente na frase, no verso, discurso do poeta, do trabalhador, do colonizador e do colonizado. E ele confessa, com esse idioma (corrente, expressivo, sonoro) herdado dos colonizadores, que recolhe lembranças.

O mestre em educação, Ezequiel Theodoro da Silva, ao participar do IV Fórum Estadual de Leitura, falou que existe uma série de condicionantes que colocam o Brasil muito mais como um país televisivo, orientado para as visualidades, do que como um país leitor. “Há um vácuo histórico no qual passamos para uma sociedade visual sem termos incrementado e sedimentado uma cultura escrita. Quer dizer: com um grande número de analfabetos, você tem o advento da televisão e do rádio que pegou o país de surpresa”. E acrescentou: “Eu não acredito em uma sociedade sem livros (...) A leitura qualifica melhor a ação do sujeito em sociedade (...) Eu acho que hoje, para você ser um cidadão, mais redondo, é preciso ler”. Para encerrar o assunto, só mesmo um trecho da composição Outras Palavras, de Caetano Veloso: “Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca”.

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