26 maio 2019


Ele é poderoso e inteligente. E tem um conjunto de regras que se recusa a quebrar como nunca mentir (para ele isso é degradante) e ama ver o circo pegar fogo sem sujar suas mãos. Seu poder de persuasão faz com que seja capaz de manipular as pessoas. Estamos falando de Lúcifer, um personagem da editora Vertigo, uma divisão da DC Comics, bem como sua revista em quadrinhos homônima. O personagem é diretamente baseado no anjo caído.



Inicialmente, ele surge idealizado por Neil Gaiman como um personagem secundário nas páginas da aclamada série de quadrinhos Sandman; e depois é detalhado e expandido por Mike Carey em título próprio, utilizando-se de todos os mitos judaicos e cristãos sobre os anjos e suas batalhas, não deixando de mencionar as histórias de cunho místico que não se vinculam a nenhuma das religiões principais.

 


Lúcifer surgiu nas páginas de Sandman, de Neil Gaiman, era o governante do Inferno que entendiado decidi fechar os portões do inferno e ir para o mundo dos mortais, baseado na aparência de David Bowie e na versão do demônio criada por John Milton em Paradise Lost. Logo ganhou uma serie própria de quadrinhos, com 75 edições lançadas entre 2000 e 2006, pelas mãos de Mike Carey, que foi bastante elogiada pelo público e pela crítica.

 


A série tanto dos quadrinhos quanto da TV segue o basicamente o mesmo prelúdio. Narrando os acontecimentos da vida de Lúcifer Morningstar (Lúcifer Estrela-da-Manhã) após ele ter abandonado o Inferno e ter se estabelecido entre os mortais,  em sua boate/piano bar chamada Lux (latim para luz) junto de sua amante e companheira Mazikeen .

 


O foco da série é a dicotomia entre a noção de destino (personificado como a vontade divina) e a noção de livre arbítrio, sendo esse o motivo da punição de Lúcifer que se rebelou contra a ideia original da criação. Outro aspecto que permeia a série são os arquétipos pré-concebidos sobre a função do diabo, como a crença de que o pecado é a tentação do mal e não o resultado de nossas escolhas ou o papel dele com compra e venda de almas, como se fosse um mercador. Em muitas edições ele se revolta contra esses arquétipos e como os mortais o culpam pelos males do mundo.



O personagem dos quadrinhos tem mais semelhanças com o Lúcifer do clássico inglês  “Paraíso Perdido” de John Milton: uma figura bela, que exala liderança, apaixonada, soberba, ciente de sua força e de sua inteligência. Uma alma nobre, atormentada, de natureza aristocrática e dotado de um código de honra que segue à risca. O Lúcifer de John Milton e dos quadrinhos do selo Vertigo tem esse ar de desprezo pela fraqueza, de pouco caso com os que aceitam a obediência. Desprezo pela moral dos fracos, dos que ficam à espera de um mundo melhor no por vir.

 


Preferido do Criador, o Portador da Luz é um ser amargurado por se sentir traído por Deus ao descobrir que uma eternidade de serviços prestados será ignorada em prol de uma nova raça criada pelo Senhor: os homens. Claramente inferiores aos Anjos, sem sua beleza, inteligência e força, mas que receberão o maior presente de Deus – negado aos Anjos – o livre arbítrio. Em sua fúria ao ter todo seu amor e serviço não valorizados e em ter negado o direito ao livre arbítrio, Lúcifer articula uma rebelião nos Céus, sendo por fim derrotado por Miguel Arcanjo.



Derrotado, jogado ao Inferno com sua hoste de seguidores, Lúcifer por fim transforma a derrota em conquista, declarando aos seus seguidores o direito de tomar suas próprias decisões, seguirem seus desejos, reinando a seu modo. É deste personagem Miltoniano – e não do bíblico – que Neil Gaiman bebe para contar a história de Lúcifer, quando o mesmo percebe que não, ele ainda não tem seu livre arbítrio. Que seu reinado individual no Inferno é falso.

 


Deus quem decide as regras de salvação ou condenação da alma e quem envia ao Inferno ou perdoa os atos. O julgamento das ações humanas é sempre de Deus, nunca de Lúcifer. Este apenas recebe as almas mandadas por uma Ordem Superior. Lúcifer percebeu que estava sendo enganado. Ele não reinava. Obedecia. Ele não era livre, mas mantinha seus vínculos de vassalagem com o Todo Poderoso.



A série de quadrinhos é filosófica. Discute a questão do livre-arbítrio e da predestinação, a criação da identidade, a ansiedade da responsabilidade pelas próprias decisões e pela criação do próprio destino em um mundo que está sempre em mudança; onde a noção de hierarquia está deteriorada e não existem mais papéis fixos. De certa forma, o personagem Lúcifer está até o pescoço envolvido com todos os assuntos que sociólogos como Zygmunt Bauman retratam na atual modernidade líquida.

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