Píer Paolo Pasolini (1922/1975), artista que hoje se chamaria de um multimídia – era prosador, poeta, repórter, articulador, pintor, e “também” cineasta. Quer dizer, o cinema era um meio de expressão, entre outros. E esse meio lhe servia para dar forma a uma posição determinada diante do mundo. Posição de esquerda, porém fora da esquerda oficial. Libertária do ponto de vista sexual, provocativa em política, conservadora na religião. Ele queria captar o discurso do povo e não fazer um discurso sobre o povo. Seus filmes mostram a disposição de encontrar essa força primitiva que viria dos estratos populares, livre de contaminação da cultura de elite. Forças primais, as forças da saúde – o sexo, a fome, o riso, o prazer em todas as suas formas, mesmo as mais escatológicas.
Pasolini nunca foi uma unanimidade, mas foi, incontestavelmente, um personagem decisivo da cena cultural italiana e não apenas da cinematográfica. Como Glauber Rocha no Brasil, ele foi acima de tudo um agitador. Revolucionou – e talvez tenha convulsionado – a estética e a política. Emerge do neo-realismo do após-guerra e mescla temas sociais a um cristianismo popular muito à sua feição. Ele é um retratista de primeira da periferia romana, como se vê em “Desajuste Social” (1962), e “Mama Roma”. Seu “Evangelho Segundo São Mateus” mostra um Cristo revolucionário e a crítica política em “Gaviões e Passarinhos”. Em “Teorema” é a sexualidade que vem desarranjar a sonolenta estabilidade da família burguesa. Da mesma forma, os filmes míticos como “Medeia” e “Édipo Rei”, seriam buscas de salvação na luta de classe sem-fim.
Enquanto o homem moderno acostumou-se a tratar com desdém a Idade Média, chamando-a de época das trevas, Pasolini lançou a sua trilogia da Vida como “Decameron”, “Os Contos de Canterbury” e “As Mil e Uma Noites” onde haveria alguma esperança no homem. Para ele, a idade da escuridão era esta, a nossa, a do capitalismo e da sociedade de consumo. Essa profecia do caos ele a realizou por completo no filme que acabou como sendo seu testamento, “Saló”, no qual identifica o fascismo com a obra de Sade. Ele fala da cidade de Saló, onde Mussolini fundou a República Social Italiana, sob proteção alemã, em 1943, já no epílogo da sua aventura. O filme é trágico, profético e fundamental.
“Pasolini foi um crítico radical da sociedade de seu tempo”, afirma a professora da Unicamp, Maria Betânia Amoroso no livro Píer Paolo Pasolini (Cosac & Naify). “Ele foi um dos que, por primeiro, souberam enxergar a virada irreversível do mundo”. A estudiosa preferiu tratar, entre as várias facetas de Pasolini, a do “diagnosticador” dos tempos que viriam, ressaltando os dois pontos que ele defendeu ao longo da vida. “O primeiro é que, para ele, o mundo está constituído de forças contrastantes, sem que, todavia, isso signifique o conformismo estéril; e o segundo é que a arte exige conhecimento prévio e técnico, não sendo ato de pura vontade nem dom natural. Quando fez crítica à ideologia, nunca foi cínico”. Ele radicalizou, como poucos pensadores, o discurso anticomunista e antifascista. Teve a intuição do que seria o mundo globalizado e o criticou com veemência. É esse seu maior legado.
Nos seus filmes, Pasolini se deslocava e se distanciava cada vez mais dos centros industriais. Suas criações desse período foram instrumentos de uma batalha desesperada contra a degradação neocapitalista do mundo. Temos, por exemplo, contra o materialismo burguês, o senso metafísico e o irracionalismo religioso em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) e em Teorema (1968); contra o racionalismo pragmático, a magia e a força do irracional e do mito em Édipo-Rei (1967), Medéia (1970) e nas Notas por uma Oréstia Africana (1970); contra a ideologia do desenvolvimento e da eficácia tecnológica, o caos e a barbárie em Pocilga (1969). A partir de 1970 ele resolveu lutar contra seu pessimismo e consagrou sua “trilogia da vida” à exaltação da realidade corporal simbolizada no corpo nu e no sexo nos filmes Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As Mil e uma Noites (1974). O sexo é também o principal protagonista de Saló, ou Os 120 Dias de Sodoma (1975), o último filme de Pasolini. O sexo, não como fonte de prazer, mas como objeto de tortura: é com esta imagem da desrealização fascista do corpo – isto é, justamente do último reduto da realidade – que Pasolini compõe o retrato final do seu mais absoluto desespero.
Talvez o filme mais deliberadamente abusivo produzido por um diretor de primeira linha, Saló mostra perversões sexuais tão cruéis que uma cena comum de amor heterossexual logo é punida com a execução dos amantes. Apesar do realismo apocalíptico ser a tônica da narrativa de Saló, a força ficcional tem inspiração no romance Os 120 Dias de Sodoma, de Marquês de Sade, que faz Pasolini aproximar sadismo e fascismo como práticas correntes do mundo moderno. Ambos, para ele, refletem a economia política e o aviltamento consumista da sexualidade. Pasolini sintetiza sua luta contra o terror – da direita e da esquerda. É o grito contra o poder e sua força de manipulação, contra a violência ao pensamento e à mercantilização do corpo, no sentido do aprisionamento às regras de uma sociedade de consumo. Talvez o filme mais cruel, o grau máximo da ficção cotidiana mais subversiva em seu poder de crítica e desespero que o cinema produziu no século XX. Foi o último delírio de Pasolini.
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