29 agosto 2006

No canto dos trovadores, a voz rasgada do povo


“Veja só quanta miséria/veja só quanta agonia/veja a que ponto chegou a nossa Bahia/o povo sem trabalhar/por falta de energia” (Cuíca de Santo Amaro). Um dos poetas mais conceituado do Brasil foi o baiano Cuíca de Santo Amaro, autor do famoso “O homem que inventou o trabalho”. Seu verdadeiro nome era José Gomes (1907/1964) e os seus primeiros trabalhos começaram, a ser divulgados em 1927. Figura controvertida, amigo de grandes personalidades da época, inclusive de Getúlio Vargas, preso algumas vezes por causa de sua mordacidade – Cuíca era um poeta satírico na linha de Gregório de Matos -, personagem de livros feitos na Bahia para alguns era um engodo e para outros era a maior expressão em literatura de cordel no Brasil. Em mais de trinta anos de atividade literária, o poeta Cuíca de Santo Amaro documentou da maneira mais completa a vida cotidiana baiana. Problemas como a carestia do povo, os costumes, os usos e a moral vigentes na cidade de Salvador, os crimes, os desastres e os pequenos casos escabrosos da vida particular baiana.

Outro consagrado cordelista é Minelvino Francisco Silva (1926/1999), o trovador Apóstolo. Ele é autor de ABC dos Tubarões, e História do Touro que Engoliu o Fazendeiro. A característica mais marcante do trovador é sem dúvida, o seu acentuado senso crítico, além da sua capacidade para fazer rimas. Mas nem sempre o trovador utiliza dos seus versos para glosar. Há folhetos só de exaltação como “A Chegada de Catulo no Céu”, de Rodolfo Cavalcante. Rodolfo (1917/1987) é autor de obras como ABC da Carestia e As Belezas de Brasília e as Misérias do Nordeste. Ele lutou a favor da classe dos poetas de bancada. Publicou artigos em jornal, organizou congressos e fundou associações e agremiações e com isso, tornou mais digna e representativa a classe dos poetas populares. “Não vês a nossa política/prometendo endireitar/a gente passando fome/tudo subindo subindo/a gente se sucumbindo/o mundo vai se acabar”.

É comum na literatura de cordel – diz o crítico Carlos Alberto Azevedo – o culto do herói: Zé Garcia, João Grilo, Vira Mundo, Padre Cícero, Frei Damião e tantos outros, pois que os folhetos decantam a personalidade de um injustiçado, beato ou “santo”. O herói da literatura popular é forjado na própria estrutura social rural, seja em qualquer zona fisiográfica da região (mata, agreste, sertão). O herói é aquele que se rebela contra o statuo quo. Seja ele sertanejo forte e corado ou um Zéamarelinho ancilostizado da zona da mata.

“Com esse aperto de vida/o povo que nada pode/pra se esquecer da fome/leva tudo no pagode/agora, na eleição/nas urnas de Jaboatão/o povo votou num bode/não é coisa de poeta/nem é boato inventado/o caso foi verdadeiro/o rádio tem divulgado/se a gente que não crê no jornal tem o clichê/do bode fotografado” (A Vitória de Cheiroso, o Bode Vereador, de Delorme Monteiro e Silva). A temática da seca atinge o ápice da expressão comunicativa, enquanto crônica, narrativa, protesto político-social, jornalismo na literatura de cordel. É preciso não esquecer que, até meados do século XX, tanto o folheto quanto o poeta popular, que improvisava e cantava nas feiras livres nordestinas, os casos e "causos", exerciam a função comunicativa que hoje cabe à mídia, em particular, ao rádio e à televisão.

"A Triste partida", de Patativa do Assaré, cantada por Luiz Gonzaga, talvez seja a síntese de tudo que pode acontecer e se relacionar à seca, não passando despercebido da sensibilidade do poeta popular, conforme se observa nos versos: “Setembro passou/Outubro e novembro/Já tamo em dezembro/Meu Deus, que é de nós?/Assim fala o pobre/Do seco Nordeste/Com medo da peste/E da fome feroz/A 13 do mês ele fez experiência/Perdeu sua crença nas pedra de sal/Mas noutra experiência com força se agarra/Pensando na barra do alegre Natal/Rompeu-se o Natal, porém barra não veio/O sol bem vermeio nasceu muito além/Na copa da mata buzina a cigarra/Ninguém vê a barra, pois barra não tem/Sem chuva na terra descamba janeiro/Depois fevereiro e o mermo verão/Entonce o nortista, pensando consigo/Diz: isso é castigo, não chove mais não/Apela pra março, que é o mês preferido/Do santo querido, o senhor São José/Mas nada de chuva, tá tudo sem jeito/Lhe foge do peito o resto de fé/Agora pensando ele segue outra trilha/Chamando a família começa a dizer:/Eu vendo o meu burro, meu jegue, o cavalo/Nós vamo a São Paulo vivê ou morre...”

Juscelino Kubitscheck, João Goulart e Jânio Quadros foram os presidentes cantados sobretudo em poemas circunstanciais, após suas eleições, no momento de sua instalação no poder e no momento do encerramento de suas funções. Convém juntar o nome de Getúlio Vargas onde o número de folhetos sobre o presidente gaúcho, após sua morte em 1954, é bem superior ao número de folhetos de cada um de seus sucessores. “Amigo agora peço/a vossa honrada atenção/vou rimar, entre soluços/que me vêm do coração/as horas, tristes, amargas/da morte de Dr.Vargas/Presidente da Nação” (A Vida e Tragédia do Presidente Getúlio Vargas, de Antonio Teodoro dos Santos).

A literatura de cordel é um importante meio de expressão popular com valor informativo, documental e de crônica poética e histórica. O cordelista ao mesmo tempo é poeta e jornalista, conselheiro do povo e historiador popular. Em 100 anos de existência a literatura de cordel testemunha a longa evolução percorrida durante mais de um milênio pela literatura européia: a transformação de sua “literatura oral” em literatura na concepção moderna do termo. No Brasil, os encontros, as pelejas, as narrativas de encantamento, os folhetos "de época" vão continuar percorrendo o sertão. E hoje, o cordel é objeto de estudo de vários especialistas. Vida longa ao cordel!.

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