10 agosto 2006

Balada de Hugo Pratt, desenhista sem fronteiras

O personagem é fascinante, verdadeira ode a liberdade. Corto Maltese está sempre em busca de aventuras. Para os novos leitores uma oportunidade de conhecer esse marinheiro, “alter ego” do autor. “A Balada do Mar Salgado” está sendo (re) lançada no Brasil pela editora especializada em quadrinhos, a Pixel. È o ponto inicial nos vários títulos do italiano Hugo Pratt que pinta sonhos com as cores da realidade. Nascido em Rimini (a cidade do cineasta Fellini) em 1927, o pequeno Pratt foi levado por seus pais em uma longa viagem pela África, onde entrou em contato com os costumes e tradições culturais que marcariam sua formação. Morou na Etiópia, retornou à Itália, fixando-se na casa da família em Veneza, onde cresceu e se educou. Ingressou na Cruz Vermelha quando estourou a Segunda Guerra Mundial. É ali que faz seus primeiros registros iconográficos, desenhando uniformes, construções e costumes dos países por onde passou.

Quando a guerra terminou, criou com os roteiristas Faustinelli e Ongaro uma revista onde desenhou o personagem Ás de Espadas. Fracasso. Parte então numa viagem pelo mundo como marinheiro. Nos anos 50 desenvolveu junto com o roteirista Oesterheld os personagens Sargento Kirk, Ticonderoga e Ernie Pike. É nessa época que escreve seus próprios roteiros a partir de suas experiências de guerra e de suas viagens pela áfrica.

Em 1967 escreve e desenha o personagem Corto Maltese, um marinheiro romântico do início do século que vive viajando pelo mundo, como seu autor. A suave melancolia do personagem transformou Pratt numa celebridade. Com Corto Maltese, conquistou os mais importantes prêmios mundiais, entre eles o Yellow Kid, conferido pelo Festival de Lucca. Corto foi inspirado em Lord Jim, de Conrad, o escritor de sua juventude. Corto Maltese é uma verdadeira febre na Europa, e foi um sucesso ao ser editado nos EUA sob o aval do jovem mestre dos quadrinhos americano Frank Miller.

Alto, esguio, sempre vestido com uma capa azul de marinheiro acompanhado de um quepe branco com a aba inclinada sobre os olhos, o cabelo negro e a pele morena, brinco na orelha, Corto Maltese, garboso e intrépido aventureiro, é fascinado pelo mar, esse eterno desconhecido. A aventura corre em suas veias. Nascido na Ilha de Malta, na virada do século, cedo descobriu que o mar era o seu meio natural. E rodou meio mundo perseguindo seus ideais. Forneceu armas para os exércitos de Zapata e Sandino. Lutou pela libertação da Etiópia das mãos dos colonizadores europeus. Organizou o cangaço em seu combate ao coronelismo no sertão brasileiro.

A trajetória se inicia com “A Balada do Mar Salgado” (lançado no Brasil pela L&PM e agora relançado pela Pixel) onde mistura ação, história, filosofia e misticismo. De lá para cá o marinheiro romântico e aventureiro participou de várias histórias na companhia de muitos personagens, entre os quais se destacam Rasputim (um bandido sanguinário), o professor Steiner (um cientista), Cush, o Etíope (guia do deserto), Tarao (indígena da Nova Zelândia), Duquesa Marina Seminova (aristocrata e cativante), Shangai Lil (jovem ativista da seita dos Lanternas Vermelhas) e Boca Dourada (feiticeira baiana). Em suas andanças, Corto também encontra diversas figuras históricas como Jack London (jornalista e romancista americano), John Reed (cuja vida salva durante um motim), Stalin (que lhe salva a vida), o Barão Vermelho, Butch Cassidy, Sundance Kid e Herman Hesse. Pratt tem um desenho muito particular, marcado pelo traço quase cinematográfico, e suas histórias têm um forte conteúdo literário e poético.

Os álbuns com suas aventuras são as mais autênticas graphic novels (quadrinho com estrutura de romance). Afinal o fôlego de romancista é a marca registrada de seu estilo. Quando se pôs a serviço de Corto e passou a mapear suas aventuras, partiu numa viagem sem volta em busca do sentimento da natureza humana. A necessidade de aventuras de Corto passou a ser a sua própria. Pratt visitou muitas vezes o Brasil, teve vários amigos na Bahia com os quais se correspondia. Basta ler as séries “Sob o Signo de Capricórnio” e “Corto Malteses na Amazônia”. A exemplo de seu marinheiro de argola na orelha, que escolhe o destino desenhando uma linha da vida na palma da mão, à navalha (lembram de sua história quando garoto?), Pratt “parte à procura de si mesmo em lugares conhecidos”. Há algo de alquimia, de colecionador neste ficcionista que revisita perpetuamente a vida, suas certezas e sonhos. E, de passagem, ver “contando histórias de uma geração apaixonada pela existência, pois possuía o sentimento de haver sobrevivido”.

Nossas editoras demoraram para publicar algo mais desse profundo marinheiro. Restaram as publicações portuguesas das Edições 70 e distribuídas pela Martins Fontes. Agora, em boa hora a Pixel publica seus álbuns. Vamos aguardar: "Sob o Signo do Capricórnio", "As Célticas", “Corto Maltese na Etiópia", "Corto Maltese na Sibéria", "Fábula de Veneza", "A Casa Dourada de Samarcanda", "Tango", "Mû", “As Mulheres de Corto” (que reúne todas as personagens femininas que se envolveram com ele), e “O Labirinto de Corto Maltese”, livro esotérico listando todos os lugares, culturas e mitos que o personagem conheceu em suas viagens.

Aclamado como um dos maiores autores das histórias em quadrinhos de todo o mundo, Hugo Pratt faleceu em1995, na Suiça, mas sua obra artística permanece sendo continuamente republicada em todas as partes do mundo. (Gutemberg Cruz)





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