10 junho 2011

Balada de um Homem Solitário (9)

Itaparica


Acordei tarde e cheguei atrasado na redação do jornal. Minha pauta estava em cima da mesa da casa, teria que ir bater umas fotos no Pelourinho, pois o governo pretendia restaurar algumas casas antigas que pareciam querer desabar. Fui rápido para o local, chegando lá várias mulheres sentadas no batente chamavam os homens que passavam. Elas sorriam, achando fácil a vida. São mulheres quentes, estão sempre a olhar-se no espelho, a pintar-se exageradamente. Depilam-se nas partes mais secretas, estendem as mamas flácidas, solicitam o desejo dos seus amantes com gritinhos trêmulos. Bebem e dançam no meio dos jovens, fazendo amor. Todos as troçam e as chamam de loucas, apesar de satisfazer-se com as mesmas. Entretanto, elas estão satisfeitas consigo próprias, nadam num mar de delícias angustiantes.

Os que consideram ridículas, pensem se não valerá mais deixar correr a vida agradavelmente nessa loucura. É verdade que não lhes importa a desonra que a sua conduta lhes traz aos olhos dos outros. Não a sentem ou, então, não lhes dão atenção. A vergonha, a infâmia e o insulto são males quando se sentem,. O mesmo não acontece quando se apanha com uma pedra na cabeça. Não existe mal, quando não se sente. Pode o povo inteiro assobiar, não importa, se a ti próprio lhe aplaudires. E só a loucura te permite isso. Muitos acham a loucura uma resposta para a verdade. O primeiro que se manifestou sobre a loucura, elogiando-a por sinal, foi o holandês, Erasmo de Roterdan.

Como estava ganhando razoavelmente bem, mudei para um quarto ao lado, não ocupando mais o quarto do amigo Álvaro, apesar da insistência deste em afirmar que gastaria dinheiro à toa; mas o rapaz lia muito sobre vultos históricos, até altas horas da noite, e eu cansado do trabalho, tinha que dormir com luz acessa, uma tortura para mim, apesar de nunca ter dito isso ao Álvaro, confirmando até que gostava, para não contrariá-lo do seu gosto pela leitura noturna.

Na hora do almoço, todos os companheiros dos quartos vizinhos desciam e almoçavam juntos, na sala do térreo. Na hora da janta, muitas vezes chegava cansado e nem vontade tinha para descer. Algumas vezes, a mulher do pensionato, uma solteirona ou viúva,. Não sei bem, levava-me a sopa, ao que ficava muito agradecido, dizendo-lhe para não se preocupar muito comigo.

No fim da tarde, a mulher bateu à porta do quartinho, e como cochilava e não dava resposta, ela entrou cautelosamente e colocou, à beira da cama, uma xícara de café com leite. Eu, que a vira entrar, conservei-me, por cansaço ou por gosto, deitado de olhos fechados, não deixando perceber que estava acordado. A mulher lançou um olhar pra mim, cuja cabeça apoiava sobre o braço e o peito, e mostrava todo o meu vigor.

Surpreendida pela formosura dos negros cabelos, deteve-se um pouco examinando o belo rapaz, acima dos olhos cerrados, as espessas sobrancelhas sobre a pele torneada do sol, uma boca bem delineada e o pescoço grosso, mas esguio. Aquilo a excitava, e pensou no tempo em que levada pelo capricho, se deixou amar por um rapaz desconhecido.

Quase toda a tardinha, ocorria aquilo, isto é, quando me encontrava no quarto, e logo após a demorada observação, ela saía apressada como se não tivesse um minuto a perder. Uma noite, quando todos dormiam, não aguentou mais e foi ao meu quarto. Impressinou-a tanto a minha enorme nudez que teve o ímpeto de retroceder. Eu, como era normal, ia dormir sem nenhuma coberta, nada tinha para cobrir o que estava descoberto.

“Perdão”, se desculpou, “eu não sabia que você esta aqui, ou melhor, vim apanhar a xícara que esqueci”, mas abaixou o tom de voz para não acordar ninguém. “Vem cá”, disse, ela obedeceu. Deteve-se junto da cama, suando frio, enquanto lhe acariciava os tornozelos com, a polpa dos dedos e depois a barriga das pernas, as coxas....murmurando baixinho palavras doces. Beijei-a nos olhos, na boca, no pescoço. Minhas mãos tornaram-se ágeis e firmes. Deslizando-as por entre as coxas, e num movimento brusco retirei a pequena peça, despojando-a da sua intimidade. Percorria com os lábios aqueles contornos tão arredondados, de carnes acetinadas, fina e tão polida.

“Me apalpa”, disse ela baixinho e nervosa, “assim, assim”. Depois tudo seguiu um ritmo quente e novo, nascido naquele instante. Eu ansiava que essa operação não terminasse nunca. Houve a agonia dos corpos, a posse, a união, o prazer inconcebível....


***

O trajeto que leva do pensionato à redação do jornal estava tornando-se tão familiar que percorria quase sem ver. Muitas vezes, quando o trabalho era relativamente fácil, voltava mais cedo e passava na casa de Ana, agora que seus pais sabem que namoro a sua filha. Ficamos no seu quarto ouvindo na sua pequena vitrola, as músicas de Mozart, Bethoven. Ana adorava música erudita, tinha até um piano e estudava musica desde pequena. Seus pais faziam tudo por ela.

Ajoelhando-se no assoalho, fiquei acomodado sobre a cama e pedi que tocasse uma música. “Qual?”, perguntou-me. “A que gosta mais de tocar”, respondi. Ela tocava uma de Stravinski. A mão deslizava suavemente sobre as teclas do piano, a música penetrava-me. Aquilo fascinava-me, pois tinha privilégio de ouvir Ana tocar, só Na a. Quando voltei a mim, não por ter perdido a lucidez, e sim por ter penetrado numa outra dimensão, aproximei-me dela e quando ia toca-lhe os cabelos, afastei-me depressa. Compreendi que não seria honesto interrompê-la.

Outra vez abracei meus joelhos e fiquei escutando, só escutando....”Toque mais uma, você toca divino”, afirmei. “Ou você tem maus ouvidos para dizer isso, ou não entende nada de música”, disse-me ela. “Não importa o não entendimento, importa entender você, sua música....”.

-- Os poetas – murmurou Ana – vivem num conflito entre o sonho e a realidade. Oferecem alento e voz aos nossos sonhos.

-- É...a estrela tem a sua luz – confirmei -, assim como a flor a sua fragrância....

-- O poeta a sua harmonia – retrucou ela -, e o homem, os seus desejos...

-- E o amor, onde entra? – perguntei maliciosamente.

-- Em tudo!

O tempo passou e começou a escurecer, só um pouco de luz caia no meu rosto. Quando dávamos fé, já era noite. Ana era meiga e suave como a música. Ouvia sempre.

***

Era noite calma e profunda. No céu distante, infinitas estrelas palpitavam e eu estava pensando na minha solidão. De repente, senti que alguém empurrava a porta bem devagar. A princípio, tive medo, pois aquela hora não era de se esperar visitas. Estava tão absorto nas estrelas que me doeu fundo aquela volta à realidade, em noite de insônia. Virei-me e o que vi: o meu sonho num corpo de mulher. Vestia-se apenas com uma manta de cambraia fina,m onde apareciam nítidos os bicos dos seios. Era a mulher do pensionato que ficou sendo minha amante. Acariciei os seus cabelos, o colo aveludado, o ombro polido. E tudo foi como num sonho....

***

O trabalho de sábado passado foi mais atraente. A reportagem fotográfica consistia em ir à ilha de Itaparica recolher fotos sobre todos os aspectos do local, para uma publicação na edição dominical. Pegamos a lancha, eu e Marcelo, o repórter que iria fazer a matéria sobre a ilha, enquanto fotografava tudo. Ele era um rapaz magro, com os cabelos negros e nariz aquilino. Temerário ardor brilhava-lhes nos olhos. O espesso bigode e a barba comprida, não aparada desde muito tempo, davam-lhe um aspecto sério que não concordava com ele.

Alto e desengonçado, tinha exatamente a minha altura. Os cabelos caiam-lhe inamistosos, só realçando uma boca fina e contraída, dando em conjunto, um aspecto repulsivo. Suas mãos, para completar, bem longas, finas e cobertas de pelos negros, onde terminavam com dedos finos como garras. Na redação era mais conhecido como Carcará, pelo seu aspecto.

Voltando a lancha, Marcelo estava absorto em seus pensamentos e, ao mesmo tempo, sorrindo embaraçado, pelo fato das ondas baterem constantemente no casco da lancha, m olhando-lhe de surpresa e interrompendo seus pensamentos.

Paras a proa, avistava-se terra – uma nesga de terra que gradualmente se aproximava. Suas elevações se iam tornando m ais nítidas; a princípio, pareciam nuas e desoladas, mas posteriormente viu-se que as encostas estavam cobertas de arvorezinhas, de uma cor embalsamada, sem dúvida alguma, laranjeira.

Ao longo da praia, agora mais claramente discernível, cresciam altas árvores e uma vegetação extensa. Eram coqueiros para todos os lados. À medida que se aproximavam, um aroma como eu jamais conhecera, veio envolver-me. Nessa praia, os coqueiros erguiam para o alto, contra o céu limpo, e outras árvores desconhecidas por mim, e com troncos, ainda mais vigoroso, subiam do solo fecundo. Fazia alguns ângulos e clic!, a foto, clic!, mais outra. Se pudesse, ficaria para ver o pôr do sol, mas a reportagem teria que ser entregue antes das 18 horas

Marcelo e eu saltamos e começamos a observar tudo ao redor. Marcelo perguntava às pessoas e anotava tudo. Eu, por minha vez, procurava melhores ângulos para aquele lugar um pouco e tão perto, afastado da civilização barulhenta. O forte de São Lourenço e sua igreja, Ponta de Areia e outros lugares pitorescos. Ao voltar, fiquei parado a contemplar o mar batendo nas pedras, as espumas brancas e o barulho gostoso da água.

Lá longe, uma jangada deslizava lentamente por sobre o verde , no alto um azul, tão azul e o vento acariciando de leve o meu rosto. Respirei fundo, sentindo a maresia e uma imensa saudade de mim mesmo. Dos tempos de peladas na hora da arraia, dos jogos de bolinhas de gude, do furapé, arraia, pião, de tempos passados...

No domingo seguinte o chefe de reportagem elogiou nossos trabalhos e, devido a grande aceitação por parte dos leitores, passamos a visitar outras cidades a fim de colher novas reportagens, mostrando aos leitores os diversos povos, costumes, tradições e riquezas de vários municípios afastados da cidade. Santo Amaro, Cachoeira, Feira de Santana. Nesta última, passei na casa de meus pais parta ver se os mesmos estavam passando bem e encontrei minha mãe lamentando o silêncio de algumas semanas não ter-lhes escrito. Defendi falando sobre a falta de tempo, o que não a convenceu, mas serviu para confortá-la.


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Estamos publicando um folhetim com
17 capítulos dessa história escrita em 1975

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